Nem todos os Michelangelos estão em Roma, Florença ou nos grandes museus do mundo. E um deles, talvez o mais intrigante de todos, está em silêncio em uma cidadezinha chamada Bassano Romano, carregando em si uma falha que o próprio gênio considerou imperdoável.
Michelangelo Buonarroti. O mestre da Pietà, o criador do David, o pintor que deitou no chão da Capela Sistina para erguer ao teto uma das maiores obras da humanidade. Agora imagine que, em 1514, enquanto esculpia um Cristo para a prestigiosa igreja de Santa Maria sopra Minerva, em Roma, algo saiu do controle.
Durante o trabalho, uma veia escura — negra, como um fio de tinta infiltrado no mármore puro — surgiu bem no rosto da estátua, mais precisamente na face esquerda. Para Michelangelo, que escolhia cada bloco de mármore com um rigor quase obsessivo, isso era o mesmo que um erro técnico e moral. A obra foi abandonada, descartada como defeituosa.
Mas essa história, como todo bom mito, não termina aí.
A estátua, conhecida como o Cristo della Minerva, foi substituída por uma nova versão — esta, sim, terminada por Michelangelo em 1521, hoje admirada por milhares de turistas na igreja romana. A “imperfeita”, por outro lado, iniciou uma jornada curiosa: foi adquirida pela influente família Giustiniani, passou pelas mãos do escultor Gian Lorenzo Bernini — que teria feito ajustes para suavizar seus contornos — e acabou, décadas depois, sendo doada aos monges do Mosteiro de San Vincenzo Martire, em Bassano Romano, uma pequena cidade na província de Viterbo.
Desde 1644, o Cristo rejeitado está ali. Não em mármore nobre de Carrara, mas ainda assim monumental. E a veia negra ainda corta sua face, visível, silenciosa, quase simbólica. Não há multidões, nem filas, nem flashes. Só o som do tempo e o peso da história.
Uma imperfeição reveladora
A ironia? Aquela falha, que outrora selou o destino da escultura, hoje é o que a torna única. É como se o erro humano — ou natural — deixasse um rastro da obsessão pela perfeição que atormentava os grandes mestres do Renascimento. E, nesse gesto quase trágico de abandono, Michelangelo nos deixou não apenas uma estátua, mas um testemunho emocional de sua própria exigência.
É raro encontrar obras de Michelangelo fora dos circuitos mais consagrados da arte italiana. E mais raro ainda é encontrar uma peça que o artista desprezou, mas que sobreviveu ao julgamento de seu criador e ao tempo.
E talvez essa seja a maior curiosidade de todas: a ideia de que até os deuses da arte erram, e que, por vezes, é exatamente aí que reside a sua humanidade — e sua genialidade.