A Itália decidiu revisitar sua memória coletiva, enriquecendo os programas escolares com a história da própria emigração. É uma revolução necessária, formalizada por uma nova orientação do Ministério da Educação que determina que, a partir de 2025/2026, a história da emigração italiana ganhe espaço central no ensino. Mais que uma mudança curricular, a iniciativa toca um ponto essencial da identidade do país e de milhões de descendentes espalhados pelo mundo todo, e especialmente no Brasil, onde tantas famílias ainda carregam memórias cruzadas entre vilarejos italianos e terras brasileiras.
A diretriz ministerial prevê que a emigração seja estudada sob múltiplos ângulos: econômico, social, político, cultural e antropológico. O documento incentiva escolas de todos os níveis a explorar tanto as grandes transformações globais entre o final do século XIX e o XXI – industrialização, globalização, sociedades pós-industriais – quanto capítulos marcantes da história italiana, como a crise econômica do Ottocento, a era Giolitti, o pós-guerra, a reconstrução e as mais recentes crises energéticas.
Mais do que acrescentar conteúdo, o Ministério propõe um verdadeiro projeto de conscientização histórica, que envolve visitas a museus, uso de arquivos, história oral, colaboração com instituições culturais e metodologias de “public history”. Uma forma atual e aberta de revisitar o passado com ferramentas contemporâneas.
A iniciativa importa tanto para o público ítalo-brasileiro porque a emigração italiana já faz parte da história do Brasil. Milhões de cidadãos deixaram a Itália entre 1860 e 1980, formando a que é hoje a maior diáspora ítalo-descendente do mundo. Estimativas amplamente aceitas indicam que o Brasil abriga entre 30 e 35 milhões de descendentes. Quase um sexto da população, com vínculos diretos com esse movimento migratório.
Regiões inteiras do país foram marcadas por essa presença: o Rio Grande do Sul, com a imigração camponesa do Vêneto e da Lombardia; São Paulo, motor da industrialização, que recebeu italianos para o café, as fábricas e os bairros operários; o Espírito Santo, com comunidades rurais ainda próximas das origens; além de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e outras áreas. Trentino, Calábria, Campania, de todas as regiões vieram homens e mulheres para construir um novo Brasil e uma nova vida, guardando a Itália no coração.
Apesar dessa presença massiva, muitos ítalo-brasileiros cresceram com narrativas fragmentadas: um bisnonno que “veio com uma mão na frente e outra atrás”, uma avó que dizia ter chegado “com a roupa do corpo”, um sobrenome alterado na chegada. Faltou, e ainda falta, um contexto histórico estruturado, aquele que somente políticas educacionais consistentes conseguem oferecer. No caso dos italianos, a história de quem partiu é ainda mais fragmentada e limitada. Por isso, a iniciativa italiana ganha relevância global.
Quando o governo decide institucionalizar a memória da diáspora nas escolas, faz duas coisas ao mesmo tempo. Reconhece oficialmente que a emigração é parte constitutiva da identidade italiana não como episódio marginal, mas como um fenômeno que influenciou a economia, a demografia, a cultura e até a política do país. E reconhece a importância histórica das comunidades italianas no exterior. Para o Brasil, isso equivale a dizer: “vocês existem, fazem parte da nossa história”. E diz algo essencial sobre o que é ser italiano no século XXI.
Essa mudança de perspectiva afeta diretamente as relações culturais, a produção acadêmica e até a autoestima identitária de muitos ítalo-brasileiros que, pela primeira vez, veem suas histórias familiares ganharem espaço nos programas educacionais da própria Itália.
O documento insiste na ideia de interdisciplinaridade, e com toda razão. A emigração é um espelho no qual a sociedade contemporânea pode se observar com honestidade. É uma história de pobreza e esperança, de crises econômicas e reinvenção, mas também de criatividade, empreendedorismo, adaptação cultural e intercâmbio humano.
Para o público brasileiro, acostumado a narrativas às vezes romantizadas da “terra dos antepassados”, esse movimento ajuda a recolocar a história em perspectiva mais acadêmica e estruturada. Por que tantos italianos deixaram seus vilarejos? Como sobreviveram aos primeiros anos no Brasil? Que redes de apoio criaram? Que traços culturais trouxeram – culinária, dialetos, valores – e como foram transformados aqui? E, sobretudo, quais dificuldades enfrentaram? Olhar para a emigração com seriedade, como propõe hoje o governo italiano, não serve à nostalgia fácil. Serve para entender processos sociais que continuam acontecendo hoje – em outros contextos, com outros protagonistas – e que continuam exigindo empatia, políticas públicas e memória.
A decisão italiana não é apenas administrativa. É simbólica. É um convite para que também os italianos que ficaram, e que viram parte da família buscar bem-estar em outros cantos do mundo, recuperem essas histórias com mais profundidade. É um chamado a visitar museus, reler documentos familiares, conversar com parentes mais velhos, revisitar tradições às vezes esquecidas. A olhar para a própria família não como exceção, mas como parte de um fenômeno global que a Itália agora reconhece como central na formação do seu povo.
Emigração italiana entra nos programas das escolas do País e resgata a história de milhões no Brasil

