Há uma placa de trânsito, em Florença, que já não manda parar. Ela convida a pensar. É ali que começa a história de Clet Abraham, e é ali que termina a ideia confortável da obediência como valor absoluto. Porque Clet, antes de ser artista, é um homem que escolheu sair dos trilhos. E fazê-lo à vista de todos.
Restaurador, marceneiro, antiquário, pintor, gravador, escultor. Suas vidas não seguem uma linha reta. Elas se cruzam, se interrompem, recomeçam. Como se cada ofício tivesse sido necessário para chegar a um gesto aparentemente simples e profundamente revolucionário: colar um adesivo em uma placa de trânsito e transformá-la em linguagem universal. A partir daí, Florença deixa de ser apenas uma cidade. Torna-se uma obra.
Quando chegou à cidade, há vinte anos, ninguém o esperava. O ateliê em San Niccolò é casa, abrigo, fronteira. Sem aquecimento, sem chuveiro. Apenas um banheiro, uma pia e um fogareiro. Para se lavar, os banheiros públicos de Santo Spirito. A comida é básica: panelas de lentilhas, às vezes uma linguiça. As noites são longas, o sono leve, interrompido por pesadelos. Ao seu lado, a companheira de então, os filhos pequenos. Armel é amamentado ali, entre telas e madeira. Fome real. Solidão real. E, ainda assim, nenhuma rendição.
Antes de Florença vêm a Bretanha, Roma, depois os bosques do Casentino. Após a reprovação na Academia de Belas Artes de Rennes figurativo contra conceitual Clet escolhe não se adaptar. Em Roma restaura móveis, torna-se freelancer, aprende a esculpir madeira. No Casentino sobrevive como marceneiro e antiquário. Seis anos isolado, até abrir a primeira loja em Poppi. Os retratos vêm antes do reconhecimento, as paisagens nascem do território. A arte não como carreira, mas como necessidade.
Em Florença, a inspiração está em toda parte. No Piazzale Michelangelo, de onde os monumentos parecem caminhar rumo ao mar. No Batistério transformado em cafeteira, objeto doméstico, íntimo, italiano. Tocar o coração da sociedade sem pedir licença. Alguém acredita nele nos momentos mais difíceis: Marco Fattori, que lhe encomenda trabalhos quando tudo parece ruir. Pequenos gestos que mantêm alguém vivo.
A primeira placa nasce quase por acaso. Madrugadas esperando o filho Leo na estação. O tempo vira desenho. Surge o Cristo na rua sem saída. Em 14 de julho de 2010 sai o primeiro artigo. A vida muda de direção. Chegam as vendas, a fama internacional, os convites. Enquanto Florença multa, remove, apaga.
Mas a placa permanece. Popular, irônica, nunca vulgar. Filha de Florença, da sua beleza sufocada pelo trânsito, da autoridade sem diálogo. Transformar o sinal em arte é um ato político e poético. Não destrói a regra, questiona. É proibido pensar? Ou é indispensável?
Clet fala há anos com estudantes sobre legalidade e ilegalidade. Diz que não coincidem com o bem e o mal. As regras são necessárias, mas não são verdades absolutas. Podem, devem , ser melhoradas. Como ele faz ao contestar multas por “vandalismo”. Arte ou crime? Quem decide? Na street art, é você quem escolhe. Um convite ao espírito crítico.
Hoje, no ateliê de San Niccolò, trabalha em uma natividade entre bombas destinada à sinalização do hospital Santa Maria Nuova. No alto, o Homem comum, pronto para o passo livre. Como ele. No Ponte alle Grazie, esse homem continua andando. Há um diálogo tímido com a prefeitura, projetos, uma possível retrospectiva, escolas envolvidas. E um processo na Bretanha, a ser vencido, para afirmar a legalidade de seu trabalho.
A liberdade é uma forma de disciplina. Clet sabe. Ela custa caro. Mas é o único espaço onde a arte respira. E talvez por isso, aos sessenta anos, sua leveza seja ainda mais infantil. Porque sempre fez o que quis fazer. E transformou uma cidade inteira em pergunta.
Serviço:
Endereço
Via dell’Olmo, 8r, 50125 Florença (FI), Itália
Horário de funcionamento
Segunda a sexta: 10:30–13:30, 15:00–19:30
Sábado e domingo: 10:30–19:30




