O novo rosto do abandono imobiliário, entre restrições, custos e comparações com o Brasil.
Na Itália cresce um fenômeno inédito: cada vez mais cidadãos escolhem renunciar formalmente à propriedade de casas, ruínas ou terrenos que não conseguem mais sustentar. Não se trata de desinteresse, mas de uma decisão econômica e jurídica: livrar-se de bens que geram apenas custos, impostos e responsabilidades.
Segundo o ISTAT, o país possui 35,2 milhões de habitações, das quais 9,6 milhões (27%) estão desocupadas. A taxa de vacância chega a 35% nas ilhas e 32% no sul. Em muitas aldeias do interior, o valor de mercado das casas é nulo ou negativo: reformar custa mais do que vender. E os proprietários, muitas vezes herdeiros de imóveis rurais ou terrenos marginais, se veem diante de um dilema: pagar para manter ou renunciar para sempre.
A virada veio com a sentença nº 23093/2025 das Seções Unidas da Corte de Cassação, que reconheceu a legitimidade da “renúncia abdicativa”: um ato unilateral pelo qual o cidadão pode deixar o bem ao Estado, mesmo que em área de risco geológico ou sem valor econômico. É a primeira vez que a lei admite explicitamente uma “porta de saída” da propriedade imobiliária privada.
Por trás da norma, porém, abre-se um dilema. De um lado, a possibilidade de aliviar famílias e pequenos proprietários sobrecarregados por despesas e riscos; de outro, o perigo de o Estado herdar milhares de imóveis “tóxicos” — ruínas instáveis ou terrenos propensos a deslizamentos — transferindo à coletividade os custos de segurança e recuperação ambiental. Sem uma coordenação central, a renúncia pode se transformar em uma socialização dos prejuízos.
As razões do fenômeno são múltiplas: o aumento da carga tributária local, a complexidade das restrições urbanísticas, o envelhecimento da população e o despovoamento das áreas internas. A esses fatores somam-se os riscos ambientais: mais de 94% dos municípios italianos estão expostos a deslizamentos ou inundações, e manter um terreno instável pode acarretar responsabilidades civis e penais.
As “casas por 1 euro”, criadas para repovoar vilarejos, revelaram o limite oposto: restrições demais, poucos compradores e custos de restauração proibitivos. Algumas regiões estão testando “bancos de terras” para destinar terrenos abandonados a jovens agricultores ou cooperativas, mas o fenômeno da renúncia tende a crescer mais rápido que as soluções.
O confronto com o Brasil
Enquanto a Itália enfrenta uma difusão da renúncia a pequenos bens, o Brasil vive o extremo oposto: a concentração fundiária e os conflitos pela terra. Em vastas áreas rurais, milhões de hectares são disputados entre o agronegócio, pequenos agricultores e comunidades indígenas. Fenômenos como a grilagem — apropriação ilegal de terras públicas — e a incerteza dos títulos de propriedade comprometem a segurança jurídica e a proteção ambiental.
O Brasil implementou reformas agrárias e um Código Florestal que obriga à preservação de parte do solo, mas a pressão econômica e financeira sobre a fronteira agrícola continua altíssima. Se na Itália o risco é o abandono, no Brasil é o superexploramento da terra.
Dois extremos de um mesmo desafio
Itália e Brasil se encontram em polos opostos, porém complementares: onde um abandona, o outro invade.
Em ambos os casos, a terra deixa de ser um recurso para se tornar um problema coletivo.
A Itália poderia aprender com o Brasil o valor da participação comunitária e do reuso produtivo do território; o Brasil, por sua vez, poderia aprender com a Itália a importância da segurança cadastral e de instrumentos jurídicos claros para a gestão do patrimônio.
Ambos, porém, compartilham a urgência de considerar a terra não apenas como propriedade privada, mas como um bem estratégico a ser administrado com visão econômica, ambiental e social.
Sem políticas ativas de regeneração, a renúncia corre o risco de se transformar em rendição.
E em um país onde milhões de casas permanecem vazias, o verdadeiro luxo — hoje — é conseguir dar à terra uma função.

