ter. dez 9th, 2025

Ragù alla bolognese: leite sim ou não? Entre tradição, história e a receita oficial

Quando o assunto é ragù alla bolognese, a Itália parece sempre prestes a entrar em campo para um clássico decisivo. Há quem defenda tradições com o fervor de torcedores históricos e há quem, sem medo, reivindique a liberdade criativa da cozinha doméstica. Mas a pergunta que acende discussões em mesas, trattorias e redes sociais permanece ali, imperturbável: afinal, coloca-se ou não coloca-se leite no ragù? E por que essa simples dúvida mexe tanto com a alma italiana?

O historiador da gastronomia Luca Cesari gosta de lembrar que as respostas definitivas raramente pertencem à culinária. O ragù, diz ele, não é uma lei escrita em pedra, mas uma criatura viva, moldada por séculos de tentativas, segredos familiares e hábitos que mudaram junto com o país. E é curioso perceber como aquilo que hoje parece quase um sacrilégio já foi, durante muito tempo, a norma silenciosa das cozinhas italianas.

Voltar ao final do século XIX é reencontrar Pellegrino Artusi descrevendo um ragù claro, quase alaranjado, suave, às vezes enriquecido até com um toque de creme para domar a acidez da carne. Nos primeiros anos do Novecento, Ada Boni recomendava leite no lugar do caldo, sugerindo que ele conferia ao molho uma delicadeza que nem todos os cozinheiros sabiam alcançar. Só lá pelos anos 1990 a culinária italiana começou a se afastar desses gestos mais lácteos, empurrando o ragù para uma tonalidade mais avermelhada, mais robusta, quase mais masculina, como se o país também quisesse afirmar uma certa ideia de força.

Mas o leite nunca foi banido de verdade. Permaneceu ali, escondido entre memórias e panelas, ressurgindo quando alguém queria repetir o sabor da casa da avó, ou quando o cozinheiro, por instinto, sentia que faltava um detalhe para amarrar os sabores. A própria Câmara de Comércio de Bolonha, guardiã oficial do ragù, reconhece isso desde 1982 e reafirma em 2023: o leite não é obrigatório, mas é perfeitamente legítimo. Um gesto institucional que diz, em silêncio, aquilo que todos sabemos: tradição e diversidade caminham juntas.

E então chegamos à cozinha, onde toda teoria se torna perfume. O ragù nasce devagar, no calor pesado de uma panela que parece guardar segredos. Primeiro a pancetta que derrete, depois o trio perfumado de cebola, cenoura e salsão que se rende ao fogo baixo. A carne chega em seguida, chiando como quem anuncia que a verdadeira conversa está só começando. O vinho evapora como se levasse embora as pressas do mundo, e o tomate colore tudo com aquela paciência antiga que só existe em casas onde ainda se cozinha para alguém.

É nesse ponto que surge a encruzilhada: acrescentar ou não o leite? Em algumas cozinhas, ele entra aos poucos e adoça a aspereza do tomate; em outras, jamais será convidado. Mas seja qual for a escolha, o ritual permanece o mesmo: deixar o molho se transformar lentamente, respeitando silêncios, provando, mexendo, cuidando, como quem acompanha o crescer de uma história. O ragù não tolera abandono. Ele exige presença, afeto, tempo talvez o último luxo verdadeiro da vida moderna.

E é por isso que, no fim das contas, a pergunta sobre o leite revela muito menos sobre a receita e muito mais sobre nós mesmos. Cada família tem seu ragù. Cada cidade tem seu segredo. Cada geração guarda um sabor que jura ser o único autêntico. Mas o ragù alla bolognese continua sendo esse patrimônio vivo que resiste, muda, negocia, adapta-se e ainda assim permanece fiel à emoção que o criou. Talvez a sua magia esteja justamente aí: na impossibilidade de ser um só. Porque o ragù, no fundo, é como a Itália diverso, visceral, cheio de lembranças, sempre pronto para a disputa… e eternamente apaixonante.

E quando falamos da receita oficial, aquela depositada na Câmara de Comércio de Bolonha e tratada quase como um documento histórico, descobrimos que ela também conta uma história de simplicidade e rigor. Ela começa com carne bovina moída de forma grossa, pancetta fresca de porco e o clássico trio de cebola, cenoura e salsão finamente picados, tudo cozinhando lentamente em azeite extravirgem até que os aromas se encontrem. O vinho, seja branco ou tinto, entra para perfumar e desaparecer, deixando espaço para a passata de tomate, o extrato e um caldo leve que se junta aos poucos, como quem não quer apressar nada. O leite integral surge como opção, lembrança dos tempos antigos, acrescentado à metade da cocção para domar a acidez e conferir delicadeza ao molho. Por fim, o ragù descansa ali, no fogo baixo, durante duas ou três horas, engrossando devagar, ganhando cor, criando sua alma laranja-escura que anuncia que está pronto. E quando enfim chega o momento de ajustar sal e pimenta, é como se tivéssemos acompanhado o nascimento de algo maior do que um simples molho: uma tradição que atravessa séculos e insiste em permanecer viva.

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