dom. dez 14th, 2025

Sombras de Nápoles: A Bella ‘Mbriana: o espírito que protege as casas napolitanas


Em Nápoles, nenhuma casa está realmente vazia. Mesmo quando as janelas se fecham e o silêncio ocupa os cômodos, existe sempre uma presença leve, sutil – quase imperceptível – que observa, escuta, cuida. É a Bella ‘Mbriana, o espírito bom do lar, a entidade feminina que os napolitanos reverenciam há séculos, entre superstição, devoção e poesia. Se o Malocchio é o medo, a ‘Mbriana é o consolo. Ela é a alma secreta da casa napolitana.



A Bella ‘Mbriana aparece raramente, dizem. E quando aparece, é apenas para os olhos atentos: um reflexo rápido, o movimento da cortina sem vento, uma silhueta que passa diante de um espelho. Os antigos diziam que fosse uma jovem nobre enlouquecida, vagando pelas ruas até encontrar abrigo nas casas que lhe ofereciam calor. Outros falavam de uma antiga divindade doméstica, ligada às deusas protetoras do mundo greco-romano.


Mas a versão mais sugestiva que circula há séculos no becos do centro histórico, na região dos Decumanos traz uma história trágica.

Conta-se que a Bella ‘Mbriana teria sido, em vida, uma jovem mulher de beleza rara, casada com um nobre ciumento e dominador. Convencido – sem prova alguma – de que a esposa o traía, o homem mandou trancar a jovem num quarto do palácio e murá-la viva.


Durante dias, os vizinhos teriam ouvido seu choro abafado atrás das paredes, até que o silêncio tomou conta de tudo.
Quando a violência foi descoberta, o povo amaldiçoou o marido e rezou pela alma da jovem.
E naquela mesma noite, dizem que seu espírito abandonou o palácio e começou a percorrer as casas da cidade em busca de algo simples: um lar onde pudesse finalmente repousar em paz.

Assim teria nascido a Bella ‘Mbriana: um espírito feminino delicado, silencioso, que protege as casas onde se sente acolhida, e que abandona aquelas onde reina o caos, a gritaria ou a discórdia.



O que importa, porém, não é a origem. O que importa é o pacto que nasceu e ainda existe entre a cidade e a sua guardiã. A casa que respeita a ‘Mbriana permanece protegida; a casa que a irrita pode conhecer discórdia, azar ou inquietude. Por isso, ainda hoje os napolitanos dizem: “Si nun vuó’ spaventà ‘a ‘Mbriana, nun fa’ rumore” (se não quer assustar a ‘Mbriana, não faça barulho).

Um dos rituais mais conhecidos é não mover móveis bruscamente, especialmente grandes armários, mesas ou camas. A ‘Mbriana, dizem, escolhe o seu canto preferido dentro da casa.
Se alguém muda tudo de lugar sem aviso, ela se sente expulsa, e abandona o lar para sempre. Por isso, antigas famílias napolitanas costumavam avisar a casa em voz alta antes de fazer uma reforma ou reorganizar os cômodos: “Bella ‘Mbriana, perdona. É só pra melhorar.” Mais do que superstição, é um modo delicado de tratar o lar como um ser vivo, algo que apenas Nápoles sabe fazer dessa maneira.

Quase todas as casas tradicionais da cidade deixavam uma cadeira vazia próxima à janela, onde o sol entrava no fim da tarde. Era a cadeira da ‘Mbriana. Ninguém ousava sentar ali. Era um gesto de respeito, mas também um pedido silencioso: que o espírito continuasse ali, mantendo a casa leve, saudável e cheia de bons encontros.

Um dos maiores interpretes da filosofia popular de Napoli, o eterno cantor e musico Pino Daniele, no seu álbum de 1980, eternizou o mito ao cantar: “bonasera bella ‘mbriana mia, ccà nisciuno te votta fora” (boa noite, minha bela ‘mbriana, aqui ninguém te manda embora) e “‘Mbriana, si’ ll’aria ‘e stu paese” (‘Mbriana você è o ar deste País). Para muitos napolitanos, ela representa algo além do folclore: a ideia de que o lar é sagrado, que cada parede absorve histórias, que viver é conviver com memórias e presenças que não se veem.

A ‘Mbriana não é uma fada nem um fantasma. É uma guardiã silenciosa. Se algo vai mal, ela se entristece. Se a casa é feliz, ela permanece. Ela é, talvez, a metáfora mais bela do imaginário napolitano: o lar como um ser que respira, que sente, que precisa ser cuidado com delicadeza. E quem sabe, é justamente por isso que as casas de Nápoles têm aquela atmosfera única, mistura de melancolia e calor humano, como se fossem, elas próprias, personagens da cidade.

A Bella ‘Mbriana continua ali. Nos reflexos, nos ventos leves, nos cantos onde o sol toca.
Fiel, reservada, invisível. A guardiã eterna do lar napolitano.

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