qua. out 8th, 2025

Uma Itália em duas velocidades da saúde: o sistema público em equilíbrio entre direitos e desigualdades

Nos últimos anos, o Sistema Nacional de Saúde (SSN) italiano encontra-se em uma encruzilhada: de um lado, a forte pressão dos custos, das restrições financeiras e da falta de pessoal; de outro, o crescimento da demanda, a mudança progressiva das necessidades (doenças crônicas, envelhecimento, integração social e sanitária) e as profundas diferenças territoriais que ameaçam corroer os princípios fundadores do sistema — universalidade, equidade e igualdade.

O Relatório Gimbe 2025, junto com outros estudos recentes, traça um quadro alarmante, em que os Níveis Essenciais de Assistência (LEA), as migrações sanitárias e as desigualdades territoriais emergem como problemas estruturais, e não conjunturais.

Os LEA e o fracasso do “todos iguais diante da saúde”

Os Níveis Essenciais de Assistência (LEA) formam o núcleo do direito à saúde: são os serviços e atendimentos que o Estado deve garantir a todos os cidadãos, independentemente da região de residência.

No entanto, em 2023 apenas 13 das 20 regiões cumpriram os LEA. No Sul, somente Puglia, Campânia e Sardenha superaram os padrões mínimos de atendimento. Esse dado é dramático, pois significa que, em grande parte do Mezzogiorno, muitos cidadãos não recebem nem mesmo as prestações básicas garantidas por lei.

O fenômeno é tão generalizado que já não pode ser considerado exceção, mas sim uma forma de desigualdade institucional entre cidadãos, dependendo do local onde vivem.

Migração sanitária: o fluxo de pacientes rumo às regiões “virtuosas”

Uma das consequências mais visíveis da desigualdade nos LEA é a mobilidade sanitária inter-regional: pacientes deslocam-se de regiões com serviços precários para outras com mais recursos ou especialização.
• Em 2022, a migração movimentou um valor econômico superior a 5 bilhões de euros, com Emília-Romanha, Lombardia e Vêneto concentrando 94,1% do saldo positivo (ou seja, dos recursos atraídos).
• Já as regiões com maiores saldos negativos foram principalmente do Sul: Abruzzo, Calábria, Campânia, Puglia, Sicília e também o Lácio.
• Essa migração não é apenas quantitativa, mas também qualitativa: muitos deslocamentos se dirigem a estruturas privadas ou privadas conveniadas, percebidas como mais rápidas ou de maior qualidade.

Segundo análises recentes, mais de 1 em cada 2 viagens (52,6%) são feitas para clínicas privadas, mesmo quando o paciente busca atendimentos que deveriam ser garantidos pelo sistema público.

Esse “turismo sanitário interno” gera uma dupla distorção: aumenta o peso sobre as regiões do Norte e enfraquece ainda mais as do Sul, que perdem recursos e capacidade de oferecer serviços locais de qualidade.

Financiamento público, inflação e a “fuga” para o setor privado

Do “corte linear” ao encolhimento em relação ao PIB

Entre 2010 e 2019, o SSN sofreu cortes e subfinanciamentos contínuos. De acordo com a Fundação Gimbe, os cortes acumulados chegam a dezenas de bilhões de euros.

Durante os anos da pandemia (2020–2022), foram mobilizados recursos extraordinários, mas a maioria foi absorvida pela emergência. A partir de 2023, embora o Fundo Nacional de Saúde tenha crescido nominalmente — de 125,4 bilhões em 2022 para 136,5 bilhões em 2025 —, boa parte desses valores foi consumida pela inflação (5,7% em 2023) e pelos altos custos de energia.

Em termos relativos ao PIB, o gasto caiu de 6,3% em 2022 para cerca de 6,0% em 2023, estabilizando-se em 6,1% no biênio 2024–2025.
Ou seja: há mais dinheiro, mas o país cresce mais rápido que o orçamento da saúde, o que gera um “definanciamento implícito” — uma perda real de cerca de 13,1 bilhões de euros no triênio.

Rumo a um “privado expandido”

Como resposta ao enfraquecimento do sistema público, a despesa privada cresce:
• Em 2024, o gasto público destinado a prestadores privados conveniados chegou a 28,7 bilhões de euros, representando 20,8% do total da saúde — o percentual mais baixo da década.
• O “setor privado puro” (sem convênios) cresceu 137% em sete anos: de 3,05 bilhões em 2016 para 7,23 bilhões em 2023.
• Em 2023, a despesa privada per capita na Itália ultrapassou a média da OCDE e da União Europeia, principalmente devido aos gastos diretos das famílias.

Entretanto, grande parte dessa expansão “privada” é ilusória: muitos serviços são pagos com recursos públicos ou subsídios, e funcionam mais como “atalhos” do sistema público do que como alternativas reais.

Além disso, o gasto intermediado (por seguros ou fundos de saúde) continua limitado e não compensa a retração do setor público — o peso maior recai diretamente sobre os cidadãos.

Estudos recentes mostram que até mesmo o gasto privado é desigual: pessoas com renda mais alta gastam, em média, 300 euros a mais por ano com saúde privada, mesmo tendo as mesmas necessidades — revelando uma dupla injustiça.

Profissionais de saúde: a “fuga” do público e a crise da medicina territorial

Nenhum sistema de saúde pode funcionar sem médicos e enfermeiros distribuídos de forma equilibrada. Hoje, há sinais claros de crise:
• A Itália tem 315.720 médicos ativos (5,4 por 1.000 habitantes), mas apenas 109.024 trabalham diretamente no SSN.
• O problema, portanto, não é apenas o número total de médicos, mas a distribuição desigual e a baixa atratividade do setor público, especialmente em áreas periféricas.
• No caso dos enfermeiros, a Itália tem 6,5 por 1.000 habitantes, bem abaixo da média da OCDE (9,5).
• A profissão perdeu apelo: em 2025/26, há menos candidatos do que vagas nos cursos de enfermagem.
• As remunerações também são baixas: um médico especialista ganha em média 117.954 USD (PPP), contra 131.455 USD da média da OCDE; um enfermeiro ganha 45.434 USD, contra 60.260 USD.

As reformas da assistência territorial (Casas de Comunidade, Hospitais de Comunidade, Centrais Operacionais) estão atrasadas:
• Apenas 12,7% das Casas de Comunidade estão plenamente ativas;
• Apenas 26% dos Hospitais de Comunidade funcionam com estrutura completa;
• As COT atingiram metas formais, mas com eficácia variável;
• A Assistência Domiciliar Integrada (ADI) é garantida em quase todas as regiões, mas com fortes desigualdades de acesso real.

Desigualdade territorial e saúde: o custo em vidas e qualidade de vida

O divisor Norte–Sul não é apenas econômico: ele se traduz em saúde real.
• A expectativa de vida média é de 83,4 anos, mas varia: 84,7 em Trento e 81,7 na Campânia — diferença de quase 3 anos.
• O índice de mortalidade evitável é significativamente maior no Sul.
• O relatório “Um País, Dois Cuidados” (SVIMEZ, 2024) confirma que o Mezzogiorno apresenta piores condições de saúde e menor gasto per capita.
• A mortalidade por câncer é mais alta no Sul (9,6 por 10.000 homens; 8,2 mulheres) do que no Norte (8 e <7, respectivamente).

Essas disparidades mostram que as desigualdades em saúde custam anos de vida, sofrimento e exclusão social.

A cultura da renúncia e da autogestão da saúde

Com o enfraquecimento das garantias públicas e o aumento dos custos, cresce o fenômeno das renúncias aos cuidados:
• Cerca de 1 em cada 10 italianos admite ter desistido de algum atendimento médico devido a custos, filas ou dificuldades logísticas.
• Muitos preferem pagar consultas privadas de menor complexidade para evitar esperas longas.
• Isso cria uma “saúde de mercado”, onde o paciente é também um consumidor, forçado a escolher entre tempo, custo e qualidade.
• No Sul, a distância física e os custos de transporte aumentam o número de desistências.
• Fatores culturais e educacionais também influenciam: áreas com menor escolaridade usam menos os serviços preventivos.

Assim, a saúde deixa de ser um direito pleno e passa a ser um bem de consumo para quem pode pagar.

Caminho histórico e desafios estruturais

O SSN foi criado em 1978, com o ideal de garantir acesso universal à saúde. Mas desde o início existiam desigualdades regionais na infraestrutura e na formação médica.

Ao longo das décadas, políticas de descentralização, planos de ajuste e comissariamentos agravaram a fragmentação. Muitas reformas focaram em cortes orçamentários, e não em qualidade ou eficiência.

Hoje, a proposta de autonomia regional diferenciada na área da saúde pode ampliar ainda mais as desigualdades se não houver forte redistribuição e controle nacional.

O futuro: quais “cuidados” para o sistema público?
1. Refinanciamento e correção do subinvestimento: aumentar o orçamento da saúde em relação ao PIB e compensar a inflação.
2. Redistribuição territorial: criar um fundo real de solidariedade sanitária para regiões mais frágeis.
3. Reorganização da assistência territorial: consolidar Casas e Hospitais de Comunidade com equipes completas e integração digital.
4. Valorização da carreira pública: salários justos, incentivos e oportunidades reais.
5. Transparência e controle: monitoramento dos LEA, filas e desempenho regional.
6. Educação e prevenção: campanhas nacionais de alfabetização em saúde e promoção de estilos de vida saudáveis.
7. Pacto político e social: um compromisso nacional e suprapartidário para defender a saúde pública como bem comum.

Conclusão

A Itália vive uma transição delicada: de um sistema predominantemente público para um modelo híbrido, em que o setor privado cresce sem equilíbrio ou transparência.

As desigualdades territoriais, resumidas na expressão “Um país, dois cuidados”, ameaçam dividir os cidadãos entre os “de série A” (no Norte) e os “de série B” (no Sul).

Reverter essa tendência exigirá coragem política, planejamento de longo prazo e consciência coletiva de que saúde não é gasto, mas investimento social.

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