sáb. out 4th, 2025

Domingos de Ragù: Uma tradição cozida em séculos

Imagine acordar de madrugada com o aroma profundo de um ragù que cozinha há horas — um perfume que anuncia domingo, família e ritual. Essa cena existe, vivida há gerações no coração da Apúlia, entre Bari, Foggia e Brindisi, onde as avós começam antes do sol o preparo de um dos pratos mais afetivos do sul da Itália.

Em casas rurais, o ragù se prepara com paciência: costelas de cavalo ou vitela são submetidas a um cozimento lento de seis a oito horas, em fogo brando, sem pressa — “pappular” no dialeto local: ferver suavemente, não ferventar com fúria. A cada hora, o molho se enriquece: camadas de sabor, memórias e segredos guardados pelas matriarcas. Em cada lar, a receita tem nuance própria — um punhado a mais de ervas, um tipo específico de carne, um toque de vinho.

Diz-se que algumas das avós ainda usam suas tangas de algodão branco — herdadas da bisavó — não para vestir, mas para amarrar as pulseiras que sustentam todo o rito. Um gesto simbólico: amarrar tempo, memória e identidade.

Hoje, essa prática não está apenas nas cozinhas: o PAT Puglia (produto agroalimentar tradicional da Apúlia) reconhece oficialmente algumas dessas tradições culinárias. O uso da carne equina — que em muitos lugares caiu em desuso — ainda resiste com força ali, como nas braciòle (involtini de cavalo ou vitela recheados) e nos pezzetti te cavaddhru (toucinho em cubos ou pedaços de carne em molho) que fazem parte do rico leque de comidas “de domingo” no interior pugliese.

O consumo dessa carne, que era relativamente barato no passado, tornou-se um ato de resiliência cultural. A tradição pugliese mantém viva a memória daquele domingo em que toda a cidade parecia respirar o mesmo aroma — o “odor do ragù”.

Esse molho não era mera refeição: era mapa de memórias. Natal, comunhão, festa de colheita — todos marcados no perfume que impregnava as paredes. Com ele, se selava um pacto com o passado. Hoje, enquanto muitos recorrem a molhos prontos em minutos, aquelas famílias preservam o tempo dilatado como forma de resistência afetiva.

As braciòle, por exemplo, são servidas “all’interno” no molho para acompanhar o macarrão, tradicionalmente orecchiette, e também como segundo prato. Há lugares onde a brasa serve igualmente — a carne equina é grelhada ou servida crua, com limão e sal, segundo os modismos locais.

E, para reforçar a força desse costume, em Corato (no entorno de Bari) existe até uma Sagra da Carne de Cavalo — festival que reúne pratos tradicionais e celebra o vínculo entre a carne equina e a cultura local.

Feche os olhos e imagine: o aroma invade a casa, circula pelos poros, atravessa gerações. Você sente o calor da cozinha, a fumaça leve, a massa quente abraçando o molho. Esse ragù carrega não apenas sabor — carrega histórias, afetos, raízes. Ele é ponte entre o ontem e o hoje, botão de memória que pulsa em cada colherada.

Quem diria que a cozinhar lentíssima de uma carne — antes usada como força de trabalho — pudesse se tornar símbolo de festa, identidade e resistência cultural? Na Apúlia, cada domingo ainda respira esse legado.

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