sex. dez 19th, 2025

As almas pezzentelle: o pacto silencioso entre os vivos e os mortos em Nápoles

Em Nápoles, a morte nunca foi um ponto final. Sempre foi uma vírgula. Uma passagem. Um diálogo que continua. Entre ossadas anônimas, caveiras sem nome e túmulos escavados no tufo, nasceu um dos cultos mais singulares e inquietantes da cidade: o culto das almas pezzentelle. As almas pobres, abandonadas, esquecidas por todos, exceto pelo povo. Aqui, os mortos não assustam. Eles pedem atenção.

“Pezzentella” vem de pezzente, pobre. São as almas de pessoas sem identidade, sem família, sem sepultura digna: vítimas de epidemias, fome, guerras, prisões, naufrágios. Mortos que a história não registrou e que a cidade se recusou a esquecer. Para os napolitanos, essas almas vagueiam no Purgatório, à espera de alguém que as ajude a alcançar descanso eterno. E esse alguém pode ser um vivo.

Grande parte das almas pezzentelle são vítimas da peste de 1656, uma das mais letais da história europeia. Em poucos meses, a epidemia matou quase metade da população da cidade. Corpos se acumulavam nas ruas, nas casas, nos conventos. Não havia tempo, nem espaço, nem forças para funerais individuais ou sepultamentos dignos. A morte tornou-se coletiva. E o anonimato, inevitável.

Milhares de cadáveres foram levados às igrejas e aos espaços subterrâneos, onde eram tratados rapidamente para evitar novos contágios. Assim nasceram os grandes depósitos de ossos humanos que ainda hoje impressionam quem os visita.

O coração desse culto bate na Igreja de Santa Maria delle Anime del Purgatorio ad Arco, no centro histórico de Nápoles. Durante as grandes epidemias, os corpos eram levados e colocados em espaços específicos onde precisavam “scolare” (escorrer, drenar), para acelerar a decomposição tirando as vísceras rapidamente. Não por ritual, mas por urgência. Não havia tempo para esperar os tempos naturais. Depois de pouco tempo na terra, ali mesmo, era preciso liberar espaço. Depois, os ossos eram recolhidos. E os crânios – as capuzzelle – permaneciam. Cada caveira é o resto visível de uma tragédia coletiva.



Assim, na Igreja de Santa Maria delle Anime del Purgatorio ad Arco, atrás do altar, no andar de baixo, em salas angustiantes e silenciosas, repousam centenas de crânios humanos, organizados em nichos, vitrines, prateleiras.

Com o tempo, o povo começou a “adotar” essas almas esquecidas. O ritual é simples e profundo:
um fiel escolhe um crânio, limpa-o, decora-o, acende velas, reza por aquela alma. Em troca, pede proteção, sorte, saúde, respostas. Não é um pedido gratuito. É um pacto.

A lógica é clara e antiga: se você ajuda uma alma esquecida a sair do sofrimento do Purgatório ganha uma guardiã invisível, ela se torna sua protetora. Mas há regras não escritas. Se a alma não recebe mais atenção, se é esquecida novamente, pode se tornar inquieta. Não vingativa…mas insistente. Sonhos recorrentes, pequenos infortúnios, pressentimentos estranhos. Por isso, quem adota uma alma deve ser fiel. É um compromisso que atravessa o tempo.



Algumas almas tornaram-se lendárias. A mais famosa é Lucia, chamada ‘A Principessa’. Seu crânio repousa sob uma redoma de vidro e, dizem, exsuda umidade — sinal de que a alma pede orações. Outras caveiras recebem nomes, flores, bilhetes, fotos. São tratadas como membros invisíveis da família. 
O culto é tão forte que, durante décadas, a Igreja tentou proibi-lo. Sem sucesso. Nápoles nunca abandonou seus mortos.

Se o Purgatório ad Arco é o coração, o Cemitério das Fontanelle, no bairro da Sanità, é o corpo imenso desse culto. Em antigas pedreiras de tufo repousam milhares de ossos e caveiras, em sua maioria vítimas da peste do século XVII. Ali, o povo adotava almas, construía pequenos altares, criava vínculos espirituais com mortos completamente desconhecidos. Uma cidade dentro da cidade. Feita de silêncio, espera e memória.

Embora envolto em linguagem cristã, o culto das almas pezzentelle carrega traços muito mais antigos. É um eco dos cultos aos antepassados do mundo greco-romano, onde os mortos protegiam a casa, a cidade, o destino dos vivos. Em Nápoles, cristianismo e paganismo não se anulam. Se somam. A cidade aceita que o invisível faça parte do cotidiano. Que a morte esteja presente sem ser tabu.

Muitos devotos relatam sonhos vívidos após adotar uma alma. Sonhos com rostos desconhecidos, lugares antigos, palavras não ditas. Para os napolitanos, esses sonhos não são alucinações. São respostas. O mundo dos mortos fala baixo. Mas fala.

Em outras culturas, caveiras provocam medo. Em Nápoles, provocam respeito. As almas pezzentelle representam aquilo que a cidade mais teme – o esquecimento – e aquilo que mais valoriza. A memória compartilhada. Elas lembram que ninguém deve morrer sozinho. Nem mesmo depois da morte.

Ainda hoje, velas são acesas, bilhetes deixados, promessas feitas. O culto resiste ao tempo, à modernidade, às proibições. Porque Nápoles nunca rompeu o fio que liga os vivos aos mortos. Aqui, o além não é distante. Está logo ali, atrás de uma porta, sob uma escada, dentro de uma igreja. E as almas pezzentelle continuam esperando. Não por medo. Mas por companhia.

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