Em Palermo existe uma trattoria onde entrar significa desacelerar, abaixar o tom de voz, olhar ao redor e perceber que ali o tempo decidiu parar. Estamos ao longo do Corso Vittorio Emanuele, a poucos passos dos Quattro Canti, e a Casa del Brodo, conhecida por todos simplesmente como “Dal Dottore”, não é apenas uma trattoria histórica: é um verdadeiro posto de guarda da memória da cidade, um refúgio que desde 1890 continua alimentando corpos, lembranças e identidades.
Atravessar a porta é como cruzar um limite invisível. O trânsito fica do lado de fora, Palermo diminui o ritmo. A madeira escura, as cerâmicas antigas, as fotografias amareladas e aquela hospitalidade elegante, mas profundamente familiar, deixam claro desde o primeiro instante: aqui nunca se correu atrás de modas. Aqui se resistiu. Não por nostalgia, mas por fidelidade. À cozinha, às pessoas, à cidade. Não é por acaso que o local é reconhecido como Locale Storico d’Italia, um título que não pesa como medalha, mas como responsabilidade.
Mas por que, há mais de um século, todos em Palermo chamam este lugar de “Dal Dottore”?
A resposta está numa história que a cidade nunca esqueceu. No início do século XX, quando uma violenta epidemia atingiu Palermo e a pobreza caminhava ao lado das pessoas, esta trattoria nascida como ponto de descanso para ambulantes e trabalhadores da Vucciria transformou-se em um ponto de referência humano antes mesmo de gastronômico. O fundador, Salvatore Catanese, começou a distribuir xícaras de caldo de carne quente a quem nada tinha. Um gesto simples, quase instintivo, mas que produziu um efeito poderoso. Aquele caldo reconfortava, fortalecia, ajudava a se reerguer quem estava enfraquecido pela doença e pela fome.
A notícia correu rápido. Dizia-se que aquele caldo fazia bem, que “colocava a pessoa de pé”. E assim, entre histórias populares e os aventais brancos usados na cozinha, a Casa del Brodo passou a ser chamada por todos de “Dal Dottore”. Um apelido carinhoso, irônico, profundamente palermitano. Porque ali não se prometiam milagres, mas se praticava algo ainda mais raro: o cuidado.
Hoje, mais de 130 anos depois, essa história não foi arquivada. Ela continua viva. Nos fogões e no salão está ainda a mesma família do fundador. Ada e Gaetano Romeres na cozinha, Marisa no salão. Os mesmos gestos, a mesma atenção, a mesma ideia de hospitalidade que não distingue cliente de convidado. Não é folclore: é continuidade.
O caldo continua sendo o coração pulsante do menu. Os tortellini in brodo são um prato que fala baixo, sem precisar de efeitos especiais. O bollito de carne bovina, servido como manda a tradição, com batatas e mostardas, é um ritual que exige tempo e respeito. Mas a Casa del Brodo não é um museu da cozinha siciliana. É uma trattoria viva, que ao lado dos grandes clássicos do sfincione às sardinhas a beccafico propõe também pratos que dialogam com o presente sem trair o passado. Uma Norma reinterpretada em cappelli frescos recheados com scamorza defumada, um atum cozido em baixa temperatura com pecorino e mix de folhas. Pratos generosos, sinceros, que não buscam aplausos, mas memória.
Talvez este seja o verdadeiro segredo do “Dal Dottore”. Nunca ter tentado curar Palermo de suas contradições, mas tê-las acolhido, alimentado, escutado. Em uma cidade que corre, muda e às vezes esquece, aqui se continua fazendo algo simples e profundamente poderoso: cuidar.
Serviço:
La Casa del Brodo – Dal Dottore
Corso Vittorio Emanuele, Palermo
reconhecimento: Locale Storico d’Italia
segunda a sábado:
12h30–15h almoço
19h30–23h jantar
domingo: fechado