Dizem que Nápoles nasceu de um canto. Não de uma conquista, nem de um rei, mas da voz de uma sereia – Partênope – que se lançou ao mar por amor e foi levada pelas ondas até a costa onde hoje se ergue a cidade. Desde então, dizem os antigos, o destino de Nápoles vibra na mesma melodia: doce, trágica, irresistível.
Na mitologia grega, Partênope era uma das três sereias que tentaram seduzir Ulisses com seu canto. Fracassaram: o herói, amarrado ao mastro do navio, resistiu ao feitiço. Desesperada, a sereia lançou-se ao mar e morreu. O corpo, levado pelas correntes, veio repousar aos pés do monte Echia, onde os colonos gregos fundaram a primeira Parthenópe, antes mesmo da Neápolis, a “nova cidade” que daria nome a Nápoles.
O mito explica mais do que uma origem: traduz um destino. Nápoles nasce de um encantamento interrompido, de um amor que não se cumpre, de uma voz que se transforma em terra. Por isso, talvez, a cidade conserve até hoje uma musicalidade trágica e luminosa: a harmonia dos contrastes, entre a beleza e o caos. “Entre o inferno e o céu”, conforme imortalizou em sua musica um dos maiores cantores da alma da cidade, Pino Daniele.
Partênope nunca deixou de ser presença viva. No brasão antigo da cidade, aparece a sua imagem; nas festas populares, o seu nome ecoa em canções e poemas. Segundo alguns, o próprio perfil do golfo de Nápoles desenha o corpo da sereia adormecida sob o mar.
Os gregos lhe ergueram um pequeno santuário. Os romanos, templos dedicados às divindades marinhas. Durante séculos, pescadores e marinheiros deixaram oferendas às águas para pedir proteção. Ainda hoje, o mito ressurge no imaginário popular: cada vez que o mar se agita de repente, alguém diz que “a sereia se moveu”.
Em Nápoles, o mar não é só paisagem: é um espelho do invisível. O mesmo que reflete o Vesúvio e os barcos reflete também o mistério da origem, a fronteira onde o mundo humano encontra o encantamento.
Há quem veja em Partênope um arquétipo do feminino napolitano: apaixonado, corajoso, trágico e fiel à própria emoção. Outros a interpretam como um símbolo da arte: o poder de cantar, de seduzir, de transformar dor em beleza.
De qualquer forma, a sereia fundadora carrega a essência da cidade: a mistura entre o sagrado e o profano, o sensível e o instintivo. Assim como ela, Nápoles é sedutora e perigosa, acolhedora e imprevisível, uma voz que nunca cessa de chamar.
Os arqueólogos situam o primeiro núcleo urbano de Partênope no monte Echia, região de Pizzofalcone, entre o mar e a colina. Ali ficava o antigo paleópolis, a “cidade velha”, fundada por colonos de Cumas por volta do século VIII a.C.
Mais tarde, com o crescimento comercial, fundou-se a Neápolis – a nova cidade – que absorveu o antigo assentamento e se expandiu até o atual centro histórico. Mas o nome de Partênope permaneceu como identidade poética e espiritual, um lembrete de que Nápoles nasceu de um corpo feminino, do mar e da morte, do mito e da música.
Nenhum outro mito mediterrâneo traduz tão bem o espírito de Nápoles. Partênope representa a força do desejo e a beleza que se recusa a morrer. Ela é a imagem da cidade que se renova sobre a tragédia, assim como o Vesúvio, que destrói e fertiliza ao mesmo tempo.
Nas histórias populares, a sereia tornou-se protetora dos apaixonados e dos artistas. Há quem diga que os músicos napolitanos – de Pino Daniele aos cantores de rua – são herdeiros de seu canto, e que cada melodia que nasce à beira do golfo repete, à sua maneira, o lamento da sereia.
Passear por Nápoles é seguir as pegadas da sereia. Em Pizzofalcone, no alto do monte onde se ergueu a antiga cidade grega, o vento ainda traz o rumor do mar. No Castel dell’Ovo: dizem que foi ali, sob aquelas pedras, que Partênope repousou.
Na modernidade, ela renasce em arte e literatura: nas esculturas do artista Vincenzo Gemito, nos versos de Salvatore Di Giacomo, nas canções que chamam Nápoles de “a cidade-sereia”. Cada imagem, cada som, parece reafirmar a mesma ideia de que Nápoles não é apenas um lugar, mas uma criatura viva.
A arqueologia explica os fatos; a lenda explica o sentido. O mito de Partênope é, no fundo, a história de uma cidade que nunca se separou de sua origem marinha e mística. Por isso, para conhecer Nápoles, não basta olhar: é preciso escutar. Porque Nápoles, como a sereia, fala em canto, e cada eco que vem do golfo talvez seja apenas o murmúrio de Partênope chamando outra vez.
Nota da Redação: este que você acabou de ler é o primeiro episodio da Rubrica “Sombras de Nápoles”, serie de matérias de Jornal Itália que convida o leitor a uma viagem por doze semanas através dos mitos, lendas e segredos esotéricos de Nápoles. Proxima sexta-feira o segundo episodio!

