Nos cafés de São Paulo, nas rodas de conversa de Curitiba ou nas reuniões familiares no Sul, o tema continua a dominar as conversas entre descendentes de italianos no Brasil: a nova lei da cidadania italiana, aprovada definitivamente pelo Parlamento italiano na primavera europeia de 2025.
Entre dúvidas, esperanças e um certo sentimento de urgência, milhões de ítalo-brasileiros se perguntam: afinal, o que muda? E – sobretudo – o que pode ser feito para impedir as mudanças e recuperar a situação anterior?
Um dos grandes obstáculos para responder a essas perguntas é a complexidade jurídica da questão, difícil de compreender até mesmo para quem tem familiaridade com o mundo do Direito. Para entender melhor o cenário, vale recorrer à análise dos advogados Marco Zorzi e Ana Bonassi Machado, que vêm acompanhando de perto as transformações legislativas na Itália.
O que a nova lei mudou
“Até março de 2025, os descendentes de cidadãos italianos podiam obter a cidadania italiana iure sanguinis (direito de sangue) sem limitação de gerações, com base na 91 de 1992”, afirmam os advogados do escritório Andersen Ballão Advocacia. Esse panorama, no entanto, mudou radicalmente. “O Decreto-Lei 36 de 2025, de 28 de março de 2025, posteriormente convertido pelo parlamento na Lei 74 de 2025, introduziu, entre outros aspectos, a limitação de duas gerações para o reconhecimento da cidadania, excluindo diversas pessoas que, sob a regra anterior, teriam direito ao reconhecimento”.
A notícia caiu como uma bomba entre os ítalo-descendentes. Afinal, por décadas, o iure sanguinis foi o símbolo do elo inquebrável entre os brasileiros e suas origens italianas. Mas, como destacam Zorzi e Bonassi Machado, “a reforma provocou intenso debate no meio jurídico e político e trouxe à tona questionamentos sobre a própria legislação anterior, que não previa qualquer limite geracional”.
A série de complexos procedimentos judiciários
Em meio a esse turbilhão, a Corte Constitucional Italiana foi chamada a se pronunciar. Em 31 de julho de 2025, diante de quatro tribunais – Bolonha, Milão, Roma e Florença – os magistrados italianos discutiram se era legítimo conceder a cidadania a pessoas que “nascidas e residentes no exterior há várias gerações, sem vínculos efetivos com o território ou a comunidade nacional italiana”, ainda poderiam ser reconhecidas como italianas. A resposta da Corte foi cautelosa, mas reveladora. Segundo o parecer citado pelos advogados “a cidadania iure sanguinis tem natureza originária, adquirida a partir do nascimento, e é imprescritível”.
Além disso, “a definição dos critérios de aquisição da cidadania é matéria de competência do Parlamento”.
Ou seja, a Corte confirmou a validade da lei anterior, mas preferiu não se posicionar sobre a nova reforma. Como observam Zorzi e Bonassi Machado “a Corte confirmou a validade da legislação anterior, sem, contudo, se manifestar sobre a nova lei de 2025”. Essa ausência de posicionamento abre espaço para uma nova batalha jurídica – agora centrada na constitucionalidade do Decreto-Lei 36 de 2025.
Um balde de água fria no processo mais importante
“A constitucionalidade […] ainda será examinada em processo apartado”, explicam os advogados. A questão foi levantada pelo Tribunal de Turim, que “questionou especialmente a legitimidade das novas restrições, apontando possíveis violações aos princípios da igualdade, da irretroatividade e da proteção dos direitos adquiridos”.
A decisão sobre esse ponto “deve ser proferida entre o final de 2025 e o início de 2026”. Todavia, o primeiro julgamento que contesta a recente lei de cidadania italiana perante a Corte Constitucional pode nem mesmo começar.
A Avvocatura dello Stato — órgão que representa o governo italiano na defesa jurídica — teria solicitado o encerramento do processo, sob o argumento que ação foi protocolada um dia antes da vigência do Decreto 36 de 2025. Os advogados do Estado alegam que o protocolo ocorreu em 28 de março, enquanto o decreto só entrou em vigor em 29 de março. Caso o pedido seja aceito, a Corte ficaria, ao menos por ora, impedida de analisar o conteúdo central da controvérsia.
E vem mais processos…
Enquanto isso, outro debate se desenrola: o da cidadania dos filhos menores. Em julho, a Corte di Cassazione solicitou às Sezioni Unite que decidam sobre “a possível perda involuntária da cidadania italiana por filhos menores em casos caracterizados por dupla cidadania desde o nascimento e posterior naturalização de um dos pais”.
Um tema técnico, mas que toca muitas famílias. Afinal, como lembram os advogados, trata-se “de questão que afeta um número expressivo de processos em curso e que exige um esclarecimento definitivo, a fim de garantir uniformidade interpretativa e segurança jurídica.”
Um cenário ainda em evolução
Diante desse cenário incerto, uma coisa é certa: a discussão sobre a cidadania italiana está longe de terminar. Como concluem Zorzi e Bonassi Machado, “o cenário legislativo e jurisprudencial está em plena evolução e poderá, a depender das decisões judiciais e iniciativas parlamentares futuras, ampliar ou restringir o exercício desses direitos”. A recomendação é direta e prudente: “é essencial que os interessados façam, o mais breve possível, uma análise individualizada da sua situação”.
Em outras palavras, este é o momento de agir e de acompanhar de perto cada passo dessa novela jurídica que, para muitos ítalo-brasileiros, envolve não apenas um passaporte, mas a própria história de família.
A nova lei da cidadania italiana: perspectivas de mudanças enquanto a Corte Constitucional já ameaça derrubar o processo mais importante antes de começar
