qui. out 30th, 2025

“Passaporte sob demanda: os bastidores da cidadania Itália-Brasil entre fraudes, tribunais e residências fantasmas”

Nos últimos anos, o número de brasileiros descendentes de italianos que buscam o passaporte europeu disparou. Porém, por trás dessa corrida pela cidadania italiana, surgem dois problemas profundos: de um lado, um mercado paralelo de reconhecimentos rápidos e pouco transparentes; de outro, a descoberta de que muitos desses cidadãos enfrentam questionamentos judiciais, com processos suspensos ou anulados por falhas nas informações de residência ou documentação.

Uma investigação da Adnkronos revelou como a rede que deveria conectar prefeituras, consulados e promotorias não suporta mais o volume e a complexidade dos pedidos.

O fenômeno

Em 2023, cerca de 116 mil pessoas adquiriram a cidadania italiana, e em 2024 o número deve chegar a 121 mil (+4,4%).
Mais da metade (52%) dos reconhecimentos ocorre por descendência (iure sanguinis).
Somente no Brasil, mais de 41 mil brasileiros tornaram-se cidadãos italianos em 2023 — cerca de 70 por mil habitantes.
Os consulados mais sobrecarregados são os de São Paulo (21 mil reconhecimentos) e Buenos Aires (12 mil), juntos respondendo por quase um terço do total mundial.

As fraudes e os casos concretos

As investigações recentes revelaram um sistema difuso de residências falsas e intermediações ilegais.
• Crocetta del Montello (Treviso) – Entre 2018 e 2022, cerca de 160 sul-americanos obtiveram cidadania em poucos dias com declarações falsas e sem nunca terem morado no município. Policiais locais e intermediários privados estão entre os investigados.
• Uggiate-Ronago (Como) – Ao menos 171 brasileiros declararam residência em um condomínio vazio. Uma funcionária pública e uma mediadora brasileira cobravam até 3.500 euros por processo.
• Val di Zoldo (Belluno) – Cidade de 2.800 habitantes, mas com mais de 600 pedidos de cidadania de descendentes sem qualquer vínculo real com o local.

Esses esquemas mostram a existência de circuitos paralelos, nos quais a cidadania italiana virou um produto negociável — não um direito legítimo baseado em vínculo familiar e cultural.

As consequências nos tribunais

O problema chegou às salas dos tribunais italianos.
Em diversos casos, quando um ítalo-brasileiro é investigado ou parte de um processo, as notificações judiciais não são entregues porque o endereço declarado na Itália é falso ou inexistente.
Em outros, o Ministério Público não consegue confirmar junto aos consulados se o investigado ainda possui cidadania italiana válida, o que torna ineficaz a ação judicial.

Ser ou não cidadão italiano muda tudo: define qual tribunal tem jurisdição, se um crime cometido no exterior pode ser julgado na Itália e até se uma condenação pode levar à revogação da cidadania.
Um simples erro de cadastro pode paralisar todo um processo criminal.

A resposta do governo

Para conter o fenômeno, o governo aprovou o Decreto-Lei nº 36/2025, convertido na Lei nº 74 de 23 de maio de 2025, que reforma a histórica Lei 91/1992 sobre cidadania.

As principais mudanças:

• A cidadania por descendência (iure sanguinis) passa a exigir vínculo efetivo com a Itália: o requerente deve comprovar que um dos ascendentes (pais ou avós) nasceu ou viveu no país por período comprovado.
• Para filhos menores nascidos no exterior, o reconhecimento deixa de ser automático: é necessária uma declaração de manutenção do vínculo e revisões periódicas.
• Os pedidos serão centralizados em um escritório nacional do Ministério das Relações Exteriores, e não mais apenas nos consulados, para permitir cruzamento de dados e maior controle.

Revisão pela Corte Constitucional

As novas regras, no entanto, ainda não são definitivas.
Associações de descendentes e escritórios de advocacia italianos apresentaram recursos à Corte Constitucional, alegando violação aos artigos 3º (igualdade de todos os cidadãos) e 22º da Constituição italiana (proibição de privação arbitrária da cidadania).

A Corte já considerou admissíveis as ações de inconstitucionalidade, e as primeiras sentenças são esperadas entre a primavera e o verão de 2026.
Enquanto isso, o Ministério do Interior orientou prefeituras e consulados a suspender revogações e aplicar a lei “de forma prudente”, mantendo a verificação documental mas sem negar automaticamente os processos em andamento.

Se a Corte confirmar a constitucionalidade, a nova lei entrará plenamente em vigor até o fim de 2026, com um sistema digital unificado para rastrear e auditar todos os reconhecimentos feitos entre Itália e América Latina.

O que muda para quem vive no Brasil
•   Pedidos apresentados antes de 27 de março de 2025 seguem as regras antigas.
•   Novos processos deverão comprovar o vínculo efetivo com a Itália e estarão sujeitos a prazos mais longos e fiscalização rigorosa.
•   Haverá verificação cruzada obrigatória entre prefeituras, Ministério Público e consulados, para evitar cidadãos “invisíveis” apenas no papel.
Por que isso importa

Ter cidadania italiana não é apenas um símbolo ou privilégio: implica direitos e deveres reais, inclusive em termos judiciais e administrativos.
Uma cidadania concedida de forma irregular pode gerar impunidade e insegurança jurídica, além de manchar a credibilidade do sistema.

Ao mesmo tempo, se confirmada pela Corte, a nova lei poderá restaurar transparência e legitimidade, distinguindo entre quem tem vínculo real com o país e quem se beneficiou de brechas legais.
Como afirmou o chanceler Antonio Tajani, “a cidadania deve voltar a ser algo sério, não um produto vendido ao melhor comprador”.

A era da “cidadania fácil” parece chegar ao fim.
O reconhecimento por descendência sem raízes reais criou distorções, fraudes e incertezas jurídicas.
Agora, cabe à Corte Constitucional decidir se a nova lei de 2025 está de acordo com os princípios da Constituição italiana.

Enquanto isso, milhões de ítalo-brasileiros vivem um período de incerteza — entre o medo de perder um direito adquirido e a esperança de ver restaurada a dignidade e a credibilidade do passaporte italiano.

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