qui. out 30th, 2025

Do gesto da Nonna ao dossiê da UNESCO: A alma da cozinha italiana em busca da imaterialidade

Em um país onde a história se lê nos muros de pedra de vilarejos e as paisagens se desenham entre colinas de olivares e vinhedos, há um outro tipo de patrimônio — invisível, mas profundo — que agora assume os holofotes internacionais: a cozinha. A candidatura da “Cozinha Italiana” ao status de bem imaterial da “UNESCO” não é apenas sobre ingredientes ou receitas. É, acima de tudo, sobre identidade, ritual e uma herança que se transmite à mesa.

Aqui o que está em jogo não são apenas receitas de carbonara ou pizza. É o ritual, a sabedoria ancestral e o senso de identidade que se desenrolam à mesa e na cozinha.

A ideia de candidatar a culinária italiana nasceu, ironicamente, de uma omissão. Enquanto cozinhas nacionais como a francesa, a japonesa, a mexicana e a coreana já haviam recebido o selo de imaterialidade da UNESCO, a gastronomia mais popular do planeta continuava à margem. Esse “vazio” cultural era, para muitos italianos, um paradoxo.

A iniciativa ganhou corpo a partir de um esforço trilateral de instituições que representam as três esferas da cultura culinária:

  1. Accademia Italiana della Cucina: Representando a pesquisa e a documentação histórica da tradição.
  2. Fondazione Casa Artusi: Focada na cozinha doméstica e na preservação da tradição caseira, o ponto de partida de tudo.
  3. La Cucina Italiana (Revista): Trazendo a voz da imprensa gastronômica e a ponte com a modernidade e o público.

O dossiê de candidatura, intitulado “A Cozinha Italiana entre Sustentabilidade e Diversidade Biocultural”, foi então forjado não com foco em pratos isolados, mas sim no “conjunto de práticas sociais, ritos e gestos” que definem o modo de viver italiano.

A Itália já possui o maior número de sítios da UNESCO no mundo — mas poucos desse tipo imaterial. O momento da candidatura, portanto, parece calibrado.
Talvez a razão mais forte seja a convicção de que: fazer a refeição juntos, em torno da mesa, é um ritual de pertencimento. Em suas palavras, o almoço de domingo foi usado como símbolo.
Há ainda uma camada diplomática-cultural mais ampla: numa era de globalização acelerada, a cozinha italiana aparece como elo entre o local e o global — entre os que vivem na Itália e os que vivem longe dela, mas continuam se definindo como italianos ou “inspirados pela Itália”.
Além disso, o documento fala de “diversidade biocultural” — o que significa que a candidatura abraça tanto os pratos tradicionais quanto a adaptação desses pratos em contextos diversos, e se vincula à sustentabilidade de territórios e comunidades.

Para evitar a redundância com a Dieta Mediterrânea (já tombada em 2010), que foca nos ingredientes e nos benefícios nutricionais, a candidatura italiana teve que inovar na narrativa. O professor Pier Luigi Petrillo, especialista em candidaturas da UNESCO e autor do dossiê, mudou o foco: a cozinha italiana é um fenômeno cultural de identidade, e não apenas um catálogo de iguarias.

O dossiê argumenta que o verdadeiro patrimônio reside na:

  • O Ritual de Compartilhamento: A refeição como momento sagrado de encontro familiar e social, onde cada um tem seu papel.
  • O Mosaico de Saberes Locais: A diversidade irredutível das 20 regiões, onde cada uma contribui com um gesto, um ingrediente sazonal ou uma técnica que, juntos, formam a ‘italianidade’.
  • A Sustentabilidade do Não Desperdício: A filosofia de cozinha pobre (cucina povera), baseada na reutilização de restos (il recupero) e no uso de produtos sazonais e locais, um modelo de economia circular milenar.
  • Em meio à 14ª Semana da Cozinha Regional Italiana em São Paulo, Maddalena Fossati Dondero participou hoje de um evento no Instituto Italiano de Cultura, reforçando a mensagem para a diáspora. O Brasil, como um dos maiores guardiões e transformadores dessa cultura, é peça-chave na defesa do legado.

Em meio à 14ª Semana da Cozinha Regional Italiana em São Paulo, Maddalena Fossati Dondero participou nesta quarta-feira (23) juntamente com diretor da Cátedra UNESCO Pier Luigi Petrillo, diretor da Cátedra UNESCO sobre Patrimônio Cultural Imaterial na Universidade de Roma Unitelma Sapienza e autor do dossiê de candidatura; e Arnaldo Lorençato, editor-executivo e crítico gastronômico da revista Veja São Paulo do evento La Cucina Italiana – sapori, biodiversità e cultura, uma noite dedicada à candidatura da cozinha italiana a Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, cuja apreciação está prevista para dezembro deste ano.

O evento marcou também a abertura da mostra fotográfica La Cucina Italiana realizada em parceria com a revista La Cucina Italiana e com curadoria de Maddalena Fossati Dondero. As imagens foram selecionadas pela equipe da revista La Cucina Italiana e retratam pratos emblemáticos e produtos de origem que expressam a alma de cada território, convidando o visitante a uma viagem sensorial pelas paisagens do norte ao sul do país. Mais do que uma exposição, a mostra La Cucina Italiana é uma homenagem à arte de cozinhar como forma de expressão coletiva, em sintonia com a filosofia da candidatura: uma cozinha que une, educa e emociona.

Pier Luigi Petrillo falou com Jornal Italia e ressaltou alguns pontos relacionados a candidatura: “Nós tentamos explicar que, para o povo italiano, onde quer que ele se encontre, comer, o alimento, representa um fator cultural. Não é simplesmente uma forma de satisfazer uma necessidade física, mas é algo mais. É uma forma de cuidar dos outros, é uma forma de contar algo sobre si aos outros, de se apresentar aos outros, uma forma de descrever a realidade circundante. o eventual reconhecimento da UNESCO para a culinária italiana teria seus efeitos. O primeiro efeito não diz respeito à culinária italiana, mas sim à percepção mundial do alimento. há um segundo efeito adicional. É um efeito de “estímulo”, por assim dizer, no orgulho dos italianos, dos italianos que estão no exterior e que muitas vezes são, digamos, zombados por sua obsessão por comida. Dizem: “italianos, comem espaguete, italianos, vocês sempre falam de comida”. É verdade, não há nada de errado, e se o fazemos é porque queremos falar de cultura, e o reconhecimento da UNESCO teria este efeito e depois, há um terceiro efeito, que é de natureza econômica, porque, embora seja verdade que a candidatura não diz respeito aos produtos, nem à comida, nem às receitas, é claro que, no imaginário coletivo, dizer que a culinária italiana é Patrimônio da Humanidade significa dar um impulso a todas as produções, aos restaurantes em todo o mundo, que se relacionam com a dimensão da culinária italiana, sobretudo no exterior.

A candidatura da cozinha italiana à UNESCO transcende o que se come. Trata-se de quem somos quando nos sentamos à mesa, mas também de quem poderemos vir a ser se esse gesto for elevado a patrimônio coletivo.


Nesta história — de gestos antigos, ingredientes locais e mesas reunidas — emerge uma ambição: que algo tão aparentemente simples quanto “cozinhar e comer juntos” seja reconhecido como patrimônio da humanidade. A cena é ao mesmo tempo íntima (uma família, uma avó, uma panela) e global (milhões de italianos no mundo, cadeias de produção, diplomacia cultural).

Se aprovada, a Itália não terá apenas mais um patrimônio; terá o reconhecimento de que, em um mundo cada vez mais rápido e digital, o simples e cotidiano ritual de cozinhar e comer à moda italiana é, de fato, um tesouro inestimável da humanidade. É a vitória da “arte de cuidar” sobre o mero ato de alimentar.

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