Há lugares em que a gastronomia é um apêndice do território — e há o Gargano, onde ele é a própria tradução da paisagem. Este promontório agreste da Puglia, que mergulha no Adriático com falésias brancas e se estende para o interior em um mosaico de oliveiras, pinheiros e aldeias silenciosas, não se deixa decifrar com pressa. Aqui, peixe azul e pães ancestrais dividem o protagonismo com vinhos nativos, azeites dourados e receitas que parecem guardadas a sete chaves. É preciso provar, sim — mas também ouvir. Ouvir quem planta, pesca, amassa, cozinha. E, acima de tudo, deixar-se levar pelo ritmo lento de uma cozinha que se serve com o olhar para o mar e as mãos fincadas na terra.
O roteiro a seguir não é um guia: é uma travessia sensorial por seis lugares que, cada um à sua maneira, contam o que significa comer no Gargano.
1. Os Trabucchi do Gargano – o mar como arquitetura viva
Antes de falarmos de pratos, precisamos falar de um ícone que resume a alma marítima do Gargano: os trabucchi. Essas estruturas de madeira, que parecem gigantes adormecidos à beira-mar, não são apenas belas paisagens; são monumentos vivos de uma relação milenar entre o homem e o oceano. Ancorados nas rochas, eles usam a força das correntes para pescar, uma técnica engenhosa nascida da necessidade de enfrentar um litoral acidentado e águas agitadas.
Graças à associação “I Trabucchi del Gargano”, muitos deles estão sendo restaurados entre Vieste e Peschici, preservando não apenas a madeira, mas a memória de uma pesca sustentável. Ver um trabucco ao pôr do sol, com suas redes abaixadas e o ar salgado invadindo os pulmões, é uma experiência que nos transporta no tempo, lembrando-nos que a melhor comida, muitas vezes, começa com o respeito pela natureza.
2. Camavitè – liberdade criativa diante de uma baía
Em uma das baías mais deslumbrantes do Gargano, perto de Peschici, encontramos o Camavitè. Este lugar, idealizado pelo chef e sommelier Vincenzo De Nittis, transcende a ideia de um simples restaurante. É uma experiência, uma filosofia de hospitalidade que une a culinária local a uma liberdade criativa.
A cozinha de Vincenzo é um diálogo entre tradição e inovação. Ele celebra os ingredientes com uma abordagem pessoal, seja em pratos como o carpaccio de polvo com guacamole ou no ravioli de cacio e pepe com ragu de Podolica. O destaque, no entanto, são os frutos do mar crus, servidos com intervenção mínima para honrar o frescor da pesca diária. A parmegiana com queijo provola nos lembra do conforto do lar, enquanto os menus degustação – como o “Vincè Pensaci Tu” – nos convidam a confiar plenamente na visão do chef. É um lugar para saborear, mas também para sentir, levando um pedacinho desse sabor autêntico na pequena despensa do local.
3. Acqua Ristorante – Vieste em estado líquido
Em Vieste, no antigo lagar industrial à beira-mar, o Acqua Ristorante é a expressão culinária do chef Pasquale Pellegrino, um talento local com formação em alta gastronomia. Sua cozinha é uma síntese impecável de técnica e respeito pela matéria-prima. Aqui, o mar é o protagonista, mas sua história é contada com uma linguagem moderna e criativa.
Os menus degustação são narrativas coesas. Um exemplo é o acquasale com anchovas e cerejas marinadas, que brinca com o contraste agridoce de forma brilhante. A reinterpretação de clássicos como os mexilhões recheados alla viestana mostra a capacidade do chef de honrar o passado enquanto projeta o futuro. Entre os pratos principais, o carré de cordeiro com linguiça de porco preto e trufas revela uma culinária robusta e refinada. O ambiente minimalista serve a um propósito: fazer com que cada prato seja a estrela, em uma experiência que é ao mesmo tempo autêntica e sofisticada.
4. Oliveto Medina & Solco Garganico – quando azeite e pão são altares
A verdadeira essência do Gargano não se encontra apenas no mar, mas também em seu interior profundo e silencioso. Na Oliveto Medina, a família de Gianluigi, Donato e Mariano perpetua um legado de mais de um século, cultivando oliveiras centenárias de forma orgânica. Seus azeites extra virgens, como o monovarietal Ogliarola Garganica ou o intenso Coratina, são a alma da região engarrafada, produtos de uma colheita cuidadosa e processamento impecável.
E o que seria de um azeite premiado sem o pão ideal para acompanhá-lo? É aqui que entra o Solco Garganico, que usa grãos ancestrais e fermento natural para criar pães enormes, assados em fornos de pedra, com crostas crocantes e miolo perfumado. É uma combinação que nos lembra que os sabores mais ricos são muitas vezes os mais simples.
5. Il Mandrione Estates – o interior que abraça a mesa
Seguindo para o interior, em San Giovanni Rotondo, a Tenute Il Mandrione é uma fazenda orgânica que se estende por mais de 60 hectares. A família D’Amico transformou a propriedade em um ecossistema completo: lagar de azeite, adega e até uma casa de hóspedes. É um lugar para mergulhar na produção rural, que respeita os ciclos da terra e a biodiversidade.
As variedades de uvas e azeitonas são as históricas da região, como a Ogliarola, Coratina e Nero di Troia. A adega produz vinhos naturais que refletem a identidade do Gargano. A visita à loja da fazenda é uma verdadeira aula, onde é possível aprender sobre fermentações, moagem e as técnicas centenárias que mantêm essa tradição viva. É uma parada obrigatória para quem busca uma conexão genuína com a terra.
6. Quasenada Beach Club – frescor sob o guarda-sol
Para quem busca uma experiência gastronômica mais descontraída, mas sem abrir mão da qualidade, entre Mattinata e Vieste, na praia de Portonuovo,o Quasenada Beach Club em Portonuovo é o refúgio perfeito. Com os pés na areia e uma vista deslumbrante, o clube de praia oferece um menu rápido e criativo.
Os sanduíches e hambúrgueres de frutos do mar são a estrela do cardápio. Experimente o “Tunapop”, com tártaro de atum e stracciatella, ou o “Un Polpo al Cuore”, que combina polvo assado com creme de batata. Para uma experiência ainda mais local, as paposce, focaccias típicas do Gargano, são uma escolha fantástica, com recheios como polvo com cebola ou stracciatella com mortadela. Com um ambiente descontraído e a música suave ao pôr do sol, o Quasenada é a prova de que a alta gastronomia também pode ser vivida em um sarongue.
Explorar a gastronomia do Gargano é uma jornada que exige tempo e curiosidade. Não é um simples roteiro, mas um convite para vivenciar cada história e cada sabor. A culinária aqui é a técnica que se une à terra, a tradição que abraça a inovação e a hospitalidade que se faz para durar.