Sexta-feira, 21 de novembro de 2025.
Estou me arrumando com calma, mas com aquele nó no estômago típico dos grandes momentos. Antes de sair, abro o Waze: do meu apartamento até a Arena Pacaembu são apenas trinta minutos. Sorrio, incrédulo. Depois me lembro que é o famoso feriadão: muitas empresas fecharam, muita gente foi para o litoral ou para o interior. Eis explicado o trânsito inexistente.
Logo me vem outra dúvida: o clima. A manhã foi ensolarada, quente… mas e à noite? Checo a previsão e respiro aliviado: céu limpo, zero chance de chuva.
Perfeito. Hoje tudo realmente conspira a favor.
Entro no táxi. Durante o trajeto, que passa rápido entre semáforos e avenidas quase vazias, sinto a emoção crescer. Andrea Bocelli não é apenas um artista: ele representa a Itália no mundo. E nós, italianos vivendo fora, nessas ocasiões nos sentimos um pouco menos longe da nossa terra. É como se, por algumas horas, o coração voltasse a ficar mais perto de casa.
Chego. Atravesso a Praça Charles Miller e, ao longe, já vejo a fila diante dos portões. Senhoras elegantíssimas, casais sorrindo, famílias inteiras: todos emocionados, todos com aquele brilho nos olhos de quem está prestes a viver algo que vai além de um simples concerto. É também um evento cultural, identitário: um pedacinho da Itália que volta aqui, ao Brasil.
Passo pelos controles e entro na arena. Diante de mim, três telões acesos: passam imagens da vida de Bocelli, de seus concertos, de parcerias famosas. Depois, paisagens da Toscana.
A minha Toscana.
Florença é a minha cidade, eu e Andrea somos conterrâneos. Quando aparece nos telões Lajatico, sua terra natal, e depois aquelas colinas suaves, quase douradas, que deixei para trás há oito anos, sinto um arrepio subir pelas costas. Me emociono, como sempre.
As luzes diminuem. O som fica mais profundo. O locutor anuncia: “Andrea Bocelli”.
Todos de pé.
O Maestro entra no palco.
As primeiras cinco árias são puro repertório da ópera italiana. Uma potência impressionante. Os anos passam, claro, mas Bocelli continua ali, firme, impecável, como há vinte anos.
Durante a primeira parte ouvimos La donna è mobile de Rigoletto, Viva il vino spumeggiante de Cavalleria rusticana, Je veux vivre de Romeu e Julieta, O soave fanciulla de La Bohème e a sempre presente Libiamo ne’ lieti calici de La Traviata.
Fico maravilhado com a inteligência interpretativa de Bocelli: ele sabe onde impulsionar e onde conter, dosa a agilidade, desacelera o fraseado quando necessário, mas compensa com ataques limpos, fôlego controlado, finais longos e luminosos que arrepiam o público. É uma estratégia perfeitamente adaptada à sua voz atual — e funciona.
Depois de uma pausa, sobe ao palco a soprano Mariam Battistelli, italiana de origem etíope. Sua voz tem uma pureza quase irreal. Não erra um agudo, não perde uma nuance. Parece um rouxinol: etérea e ao mesmo tempo firme. O público a aplaude de pé.
Bocelli volta. Levantamo-nos de novo. Ele canta sua homenagem a Toquinho: Aquarela, em versão italiana. Um momento mágico. O público brasileiro canta junto, e Bocelli sorri. É um encontro amoroso entre duas culturas que dialogam naturalmente.
A segunda parte começa com uma entrada explosiva: a violinista moldava Rusanda Panfili. Sua energia é quase rock. Ela se move com agilidade, alternando escalas rapidíssimas, arpejos, virtuosismos pirotécnicos e linhas melódicas amplas e limpas. Uma força da natureza.
Bocelli retorna com Notte ’e piscatore, acompanhado por imagens de Luciano Pavarotti.
Um dueto virtual intenso, uma homenagem respeitosa àquele vínculo artístico dos anos 90 que tantos de nós carregamos no coração. E me comove pensar como Bocelli continua, à sua maneira, o caminho que Pavarotti abriu: o dos pontes culturais, das colaborações, da música que sai dos teatros e se oferece ao mundo.
E enquanto o escuto, ali, no coração de São Paulo, percebo que minha noite não é apenas um concerto — é um carinho na saudade, um abraço entre dois países que hoje fazem parte da minha história.
Entra em cena Sandy, a queridíssima cantora brasileira, presença constante nos shows de Bocelli aqui no Brasil. Assim que seu nome aparece no telão, o público explode em aplausos: todos já sabem qual dueto vai começar.
Vivo per Lei.
E ali, confesso, meu coração dispara. Essa canção não é apenas melodia: é parte da minha vida. Foi a música que eu e minha esposa cantávamos quando nos conhecemos em Florença, a que embalou nosso primeiro baile de casamento. Ouví-la aqui, a milhares de quilômetros de casa, com as vozes de Bocelli e Sandy se encontrando… me faz prender o ar.
No fim da música, Bocelli levanta Sandy do chão num abraço espontâneo, cheio de carinho. A plateia delira, os celulares gravam tudo. Já sei que esse momento vai viralizar rapidinho.
Depois é a vez de Pia Toscano, americana de raízes italianíssimas. Ela entra no palco como uma tempestade elegante. Dueta com Bocelli em Bésame Mucho e Canto della Terra: presença impecável, técnica perfeita, voz arrebatadora.
Mas o instante que me deixa sem fôlego é quando ela começa All By Myself. Potência, agudos altíssimos, controle absoluto… por um momento, juro, parece que estou vendo Celine Dion no palco. Standing ovation imediata, merecida, instintiva.
Bocelli volta, se inclina, sorri, agradece. A arena está de pé faz minutos, tomada pelo entusiasmo.
Mas eu, que conheço bem seu repertório, sei que ainda falta algo. Duas obras, para ser preciso.
E de fato, depois de uma troca divertida com o maestro Carlo Bernini, começa a introdução que todos esperavam: “Con Te Partirò”. Em segundos, milhares de celulares se acendem: parece um céu estrelado. Talvez hoje seja a música italiana mais famosa do mundo. Cantamos todos brasileiros, italianos, todo mundo. Por alguns minutos somos um só coro, uma só emoção.
E então, para fechar, ele oferece ao Brasil sua marca eterna: “Nessun Dorma”.
O agudo final é um golpe no peito. Me atravessa, me sacode, e num instante vejo diante de mim as colinas toscanas, as ruas de Florença, minha família, tudo o que deixei há oito anos.
Por alguns segundos, não estou mais em São Paulo.
Estou em casa.
Em casa, na Itália.

