No panteão da alta costura italiana, a Gucci ostenta uma distinção singular. Conhecida por sua opulência em couro e o brilho resplandecente de suas joias, a Maison agora volta seus olhos para uma faceta por vezes subestimada de sua herança: o lenço de seda. Longe de ser um mero acessório, essa peça modesta revela-se, em uma análise aprofundada, um micro-cosmos de criatividade e um repositório de narrativas visuais, como elucida a iminente publicação GUCCI: The Art of Silk.
A curadoria de um arquivo de moda, especialmente um dedicado a lenços, transcende a mera catalogação. É um exercício de arqueologia visual e interpretação cultural, onde cada fio de seda entrelaçado narra uma história de inovação e engenho. No universo Gucci, essa premissa é particularmente ressonante, dada a intrincada tapeçaria de inspirações que deram vida a cada estampa.
A aurora de uma expressão: Da navegação à iconografia real

A trajetória do lenço Gucci teve seu início em 1958, com a criação da estampa “Tolda di Nave”. Em uma colaboração estratégica com os mestres sedeiros de Como, região célebre por sua expertise inigualável na tecelagem da seda, a peça inaugural apresentava motivos náuticos de correntes interligadas, um sutil aceno à herança e à audácia exploratória da marca. Este design pioneiro não apenas inaugurou a linha de acessórios de seda, mas estabeleceu um precedente para uma era de inovações em design, materiais e ilustrações que se seguiria, solidificando a presença do lenço no vocabulário estético da Gucci.
A verdadeira metamorfose do lenço em um pilar da identidade Gucci ocorreu a partir da década de 1960, impulsionada pela extraordinária parceria com o ilustrador Vittorio Accornero de Testa. Por mais de duas décadas, Accornero, um artista italiano com uma sensibilidade notável para o reino botânico e zoológico, transcendeu a mera ilustração para se tornar um arquiteto visual. Sua pena deu vida a algumas das estampas de seda mais icônicas, consolidando os cinco pilares temáticos que se tornariam sinônimos da Maison: os exuberantes florais, os majestosos animais, os elementos náuticos e equestres (em um aceno às raízes equestres de Guccio Gucci e sua expertise em selaria), e o distintivo monograma de dois Gs, introduzido por ele em 1969.
No mesmo ano, Accornero presenteou o mundo da moda com a estampa “Animalia”, uma explosão de fauna vibrante que rapidamente se tornou um elemento inconfundível do léxico visual da casa. A estampa “Flora”, talvez a mais emblemática de todas, possui uma gênese igualmente lendária: inspirada na “Alegoria da Primavera” de Botticelli, foi criada em 1966 como uma homenagem pessoal de Rodolfo Gucci à Princesa Grace de Mônaco. A pedido da princesa, que buscava um lenço floral em sua visita à boutique Gucci em Milão e não encontrou um design que a satisfizesse, Rodolfo comissionou Accornero para conceber uma peça que capturasse a essência da beleza botânica em uma tela de seda. Essas criações, mais do que meras estampas, transformam o lenço em um palco para narrativas visuais, onde o lírio central de Flora ou os animais da savana se transfiguram em figuras oníricas, de ficção científica ou personagens de aventuras, revitalizando os símbolos da Casa e projetando-os para novas dimensões de interpretação e uso.
O lenço como cânone: Da passarela à expressão artística
A influência do lenço rapidamente transcendeu seu propósito como mero acessório. Já em 1969, a seda e suas estampas vibrantes foram audaciosamente incorporadas ao vestuário, adornando camisas e vestidos, estabelecendo uma prática que permanece um pilar nas coleções de ready-to-wear da Gucci. Exemplos recentes, como a temporada de primavera/verão 2025, viram modelos desfilando com lenços florais elegantemente atados à cabeça, reafirmando sua versatilidade e seu estatuto de ícone atemporal. Além de sua função primária, o lenço Gucci transformou-se em um elemento estilístico multifacetado, adornando bolsas, pulsos, cabelos e até mesmo sendo emoldurado como arte, evidenciando sua capacidade de adaptação e reinvenção contínua.
Para celebrar essa rica tapeçaria de história e inovação, a Gucci concebeu o projeto “90 x 90” (uma alusão às dimensões de 90 cm x 90 cm do acessório de sarja de seda), convidando nove artistas contemporâneos de renome global. Nomes como os estadunidenses Robert Barry e Everett Glenn, os italianos Gio Pastori, Sara Leghissa e Walter Petrone, os chineses Currynew e Yu Cai, o australiano Jonny Niesche e a sul-coreana Inji Seo foram incumbidos de criar releituras dos temas que permeiam o arquivo da marca. O objetivo é transcender a peça funcional, reafirmando o lenço como uma forma legítima de expressão artística, onde a visão e a abordagem individual de cada criador infundem nova vida à tradição.
O pináculo dessa jornada e a cristalização dessa celebração artística será o lançamento de GUCCI: The Art of Silk, uma colaboração com a prestigiada editora Assouline, conhecida por suas publicações de luxo no universo da arte e da moda, com lançamento previsto para abril. A obra não se limitará a apresentar o resultado do projeto “90 x 90”; ela promete um mergulho profundo nos arquivos da Maison, revelando imagens inéditas dos ateliês, onde a magia criativa se manifesta. Além disso, o livro incluirá registros de personalidades que foram cativadas pelo charme inegável do lenço Gucci, desde o ícone de estilo Harry Styles até a realeza como a Rainha Elizabeth II, reiterando o poder simbólico e o alcance global dessa peça que, mais do que um acessório, é um fragmento tangível da história da moda e um emblema da elegância atemporal.
