qua. jun 18th, 2025

A lei Tajani sobre cidadania e o ‘boicote do coração’ no Brasil

Em risco o consumo do Made in Italy entre ítalo-descendentes

O decreto-lei 36/2025 aprovado pelo governo italiano e já convertido em lei pelo parlamento abriu uma ferida profunda na diáspora italiana, especialmente no Brasil. Com a introdução de novas restrições à transmissão da cidadania por descendência de sangue (iure sanguinis) – agora limitada a apenas duas gerações de descendentes nascidos no exterior – a medida provocou reações jurídicas e políticas. Mas os riscos são também culturais e, sobretudo, econômicos.

É o que revela uma pesquisa exploratória realizada por Walther Bottaro, contador e especialista em internacionalização de empresas italianas no Brasil (Bcco), além de professor universitário. Conduzido com 128 descendentes de italianos, em sua maioria residentes no Brasil, o estudo revelou um dado alarmante: 70% dos entrevistados afirmaram que o decreto terá impacto negativo sobre seu consumo de produtos Made in Italy. Não se trata apenas de números, mas de um sinal contundente: o vínculo identitário com a Itália – tradicionalmente expresso também através da culinária, da moda e das viagens – está se enfraquecendo. Não é uma simples queda nas vendas: trata-se de um boicote simbólico. A decisão de reduzir ou interromper o consumo torna-se uma forma de protesto civil, uma linguagem política alternativa usada por quem se sente excluído do reconhecimento oficial de sua italianidade.

Mais preocupante ainda é o dado sobre o chamado “turismo das raízes”: 62% dos entrevistados declararam ter perdido total ou parcialmente o interesse em visitar a Itália. E entre os que mais investem em produtos italianos, a decepção é maior: dos que gastam mais de 2.000 reais por mês, 55% disseram que vão parar – ou quase parar – de consumir produtos Made in Italy.

O Brasil, com cerca de 30 milhões de ítalo-descendentes, confirma-se como epicentro dessa ruptura. Os dados coletados sugerem que o decreto atingiu exatamente a faixa etária mais envolvida cultural e economicamente com a Itália: entre 30 e 59 anos. É nesse grupo que se concentra a maior disposição de romper com o consumo Made in Italy e com o imaginário do “retorno às origens”. A mensagem que ecoa de São Paulo, Porto Alegre ou Belo Horizonte é clara: a italianidade não é apenas um passaporte — é um sentimento vivo, que também se expressa nas escolhas do dia a dia. Ignorar essa dimensão pode comprometer um vínculo construído ao longo de gerações de memória, afeto e consumo.

Numa crítica forte à medida, Walther Bottaro conta sua história pessoal para evidenciar as lacunas da lei. “Como a minha mãe e eu nascemos no Brasil, meu filho não vai ter nem pai nem avô nascidos na Itália e por isso será impedida a transmissão da cidadania”, concedida apenas no caso em que o pai tenha morado pelo menos dois anos na Italia. “Ou seja, com uma canetada foi tirado o direito de eu passar a cidadania para o meu filho”, diz Bottaro. Na leitura do professor, a norma restringe o acesso à cidadania sem diferenciar os casos. “Mataram uma mosca usando uma bazuca. Para combater um problema colocam na mesma bacia todos os italianos fora e todo mundo virou um fraudador, todo mundo quer passaporte pra ir pra Miami”, afirma Bottaro, lembrando que uma das razões usadas pelo governo italiano é que o processo de reconhecimento havia se transformado em um ‘business’.

Assim, “nada importa que nem minha mãe nem eu precisamos fazer o processo para reconhecer judicialmente a cidadania italiana, porque tivemos a transmissão automática e nunca perdemos o vínculo”, acrescenta. “Eu falo italiano, assessoro empresas italianas, acabei de passar as férias de Páscoa com a minha família italiana. Estou indo para a Itália nas próximas semanas, como vou duas vezes por ano, já fui 15 vezes. Mesmo assim — declara tristemente — não vou poder transmitir a cidadania por não ter morado lá por dois anos seguidos. Assim me separaram da minha família, meu filho não vai ser italiano. É uma medida absurda. Arrancou esse vínculo com a Itália. Tem várias pessoas como eu que mantêm a italianidade aqui e se viram jogadas fora e passamos de ser um ativo para virar uma ameaça à segurança nacional. Isso gera um sentimento de traição, absurdo”, termina.

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