sex. jul 25th, 2025

Itália faz história: Feminicídio é agora crime punível com prisão perpétua

Em um momento de consenso histórico e profunda relevância social, a Itália deu um passo gigante na luta contra a violência de gênero. Nesta quarta-feira (23), o Senado italiano aprovou, por unanimidade, um projeto de lei que não apenas reconhece, mas tipifica o feminicídio como um crime autônomo no Código Penal do país. A partir de agora, assassinar uma mulher em razão de seu gênero poderá resultar em prisão perpétua, marcando uma nova era de rigor e reconhecimento da especificidade desse tipo de violência.

A votação, que ecoou aplausos entre parlamentares de todas as bancadas e contou com 161 votos favoráveis e nenhum contrário, reflete a crescente indignação da sociedade italiana diante dos números alarmantes de mulheres mortas por machismo. A proposta segue agora para a Câmara dos Deputados, onde sua aprovação é amplamente esperada, consolidando a Itália como uma das poucas nações europeias com legislação tão explícita e severa sobre o tema.

O que muda na lei: Definindo o indizível

Até então, a legislação italiana, embora punisse o homicídio, não diferenciava juridicamente o assassinato de uma mulher motivado pelo seu gênero. O termo “feminicídio” era amplamente utilizado em debates sociais e acadêmicos, mas carecia de reconhecimento formal. A nova lei preenche essa lacuna de forma inequívoca.

Com a introdução do Artigo 577-bis no Código Penal, o feminicídio passa a ser definido como o homicídio de uma mulher cometido por atos de discriminação, ódio, abuso, ou por meio de atos de controle, posse ou dominação sobre a vítima. É crucial notar que a lei abrange, de forma explícita, situações onde o crime ocorre “em razão da recusa da mulher em estabelecer ou manter relação afetiva ou como ato de limitação de suas liberdades individuais”. Essa clareza na definição é um avanço fundamental, pois permite que a justiça identifique e puna a motivação de gênero que está na raiz desses crimes, transcendendo a mera categorização de homicídio comum.

A ministra da Família da Itália, Eugenia Roccella, resumiu o impacto: “Tipificar o feminicídio significa reconhecer a especificidade de um fenômeno e criar as condições para combatê-lo de forma mais eficaz”.

Além da prisão perpétua: Um pacote de medidas abrangentes

A nova legislação vai muito além da pena máxima. Ela representa um pacote de medidas destinadas a combater a violência de gênero em suas diversas formas e a proteger as vítimas e suas famílias:

  • Agravantes para Crimes Conexos: O texto prevê o endurecimento das penas para outros crimes de violência de gênero que frequentemente precedem o feminicídio, como maus-tratos, perseguição (stalking), violência sexual e pornografia de vingança (revenge porn). Essa abordagem visa quebrar o ciclo da violência antes que ela escale para o desfecho fatal.
  • Apoio a Órfãos de Feminicídio: Uma das disposições mais humanitárias da lei é a criação de uma rede de apoio psicológico e financeiro específico para crianças e adolescentes que perdem suas mães para o feminicídio. Essa medida é vital para mitigar o trauma e assegurar um futuro para os mais vulneráveis.
  • Agilidade nas Investigações: A lei prevê a isenção do prazo de 45 dias para interceptação telefônica em crimes mais graves de violência contra a mulher. Essa celeridade nos procedimentos investigativos pode ser crucial para obter provas e, em muitos casos, intervir antes que a tragédia aconteça.

A urgência dessa nova lei é dolorosamente justificada pelas estatísticas. De acordo com o Ministério do Interior da Itália, o país registrou 117 feminicídios em 2023, com impressionantes 99 deles cometidos por familiares, companheiros ou ex-companheiros – os chamados “crimes passionais” que, na verdade, são crimes de posse e controle. Em 2024, os números mantiveram-se altos, com 113 casos, e, até julho de 2025, mais de 50 mulheres já haviam sido assassinadas.

Esses dados frios representam vidas perdidas e evidenciam um problema sistêmico, muitas vezes enraizado em uma cultura patriarcal que naturaliza a dominação masculina. Casos de grande repercussão, como o da brasileira Ana Cristina, assassinada brutalmente na Itália na frente de seus próprios filhos, reverberaram internacionalmente e ajudaram a catalisar a pressão por uma legislação mais robusta.

A advogada internacional e ex-deputada italiana Renata Bueno, que acompanha juridicamente o caso de Ana Cristina e é uma voz ativa na defesa dos direitos das mulheres, destacou a importância do novo marco legal: “Não se trata apenas de punir os responsáveis com mais rigor, mas de oferecer também proteção real às famílias das vítimas e mecanismos eficazes de prevenção”.

Um marco, mas não o ponto final: O desafio cultural

Apesar do inegável avanço legislativo, há um consenso entre especialistas, ativistas e até mesmo membros da oposição: a lei é um passo fundamental, mas não a solução completa. O combate efetivo ao feminicídio exige uma transformação cultural profunda.

Isso significa investir massivamente em educação para a igualdade de gênero desde a infância, desconstruindo estereótipos e promovendo o respeito; realizar campanhas de conscientização contínuas que alcancem todos os segmentos da sociedade; e, crucialmente, fortalecer as redes de apoio e acolhimento para mulheres em situação de risco, garantindo que elas tenham acesso a abrigos, suporte psicológico e jurídico antes que a violência escale. A oposição italiana, embora tenha votado a favor, também ressaltou que a luta contra a violência de gênero deve ir além da punição e focar nas raízes do problema.

A aprovação unânime do Senado, liderada pelo governo da primeira-ministra Giorgia Meloni e endossada por figuras como o presidente do Senado, Ignazio La Russa, é um testemunho da seriedade com que a Itália finalmente abraça essa causa. Ao tipificar o feminicídio com a pena de prisão perpétua e criar um arcabouço de proteção, o país não apenas envia uma mensagem clara aos agressores, mas também se posiciona como um exemplo para a comunidade internacional na incansável batalha pela vida e dignidade das mulheres. É um marco histórico, sim, mas a verdadeira vitória virá quando a cultura do respeito prevalecer e o feminicídio se tornar, enfim, uma triste página do passado.

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