Esqueça por um momento o pesto perfumado e a leve farinata. No coração montanhoso da Ligúria, onde colinas e bosques escondem segredos ancestrais, reside um tesouro gastronômico surpreendente: os embutidos. Sim, você leu certo! Embora a Ligúria seja famosa por seu mar e sua culinária “pobre” de vegetais, um universo de sabores suínos, nascido da engenhosidade camponesa e de técnicas de conservação engenhosas, espera para ser descoberto. Prepare-se para uma aventura culinária que vai além do óbvio, revelando um lado delicioso e muitas vezes hilário dessa charmosa região italiana.
O território acidentado e o clima seco e ventoso do interior da Ligúria, que não permitiam grandes criações, acabaram por moldar embutidos de caráter único. São produtos geralmente pequenos, bem temperados, levemente defumados e feitos para um consumo rápido – um reflexo perfeito do estilo de vida prático e frugal de seus criadores. Muitos desses são hoje reconhecidos como Produtos Agroalimentares Tradicionais (PAT), contando histórias de uma economia de subsistência e de um conhecimento passado de geração em geração.
Conheça os protagonistas desse capítulo saboroso da história italiana:
Os astros da curadoria: De salames defumados a delícias cozidas
O rei das mesas genovesas, o Salame di Sant’Olcese, é uma verdadeira lenda. Originário da cidade de mesmo nome, esse salame é uma união feliz de carne magra de porco e boi, temperado com um toque de alho, pimenta-do-reino e vinho branco. Mas o segredo está na “leve defumação, tradicionalmente em frente à lareira”, que lhe confere um aroma inconfundível. Uma delícia que remonta ao século XIX, quando o gado do Piemonte trouxe novas técnicas de processamento à região. Imagine o cheiro da fumaça invadindo as cozinhas camponesas!
E que tal um salame que desafia as expectativas? O Salame Cozido Sassello, vindo das montanhas de Savona, é uma joia rara. Feito com carne de porco temperada com vinho, especiarias e ervas, ele passa por um curto período de maturação antes de ser… cozido! Isso mesmo. Essa técnica o torna supermacio, mais aromático e absurdamente fácil de digerir. Um luxo para feriados e ocasiões especiais, servido quente ou frio com pão caseiro e um bom vinho local – a cara da festa na roça!
O resgate dos “restos”: Humildade que vira sabor
A Ligúria, com sua sabedoria camponesa, nunca jogou nada fora. E é aí que a diversão começa! A Mostardella é um exemplo brilhante. Nascida da necessidade de aproveitar os “restos” da carne que sobravam de outros embutidos mais nobres, essa iguaria é feita de carne de porco e bovina cruas, nervos e uns 30% de gordura macia, temperada com vinho, sal e pimenta. Parece um pequeno salame fresco, de cor escura, ideal para ser cortado em fatias grossas sobre pão quente ou para dar um “up” em sopas.
Mas a Mostardella tem uma história que vai além do prato. Em tempos passados, ela era o presente do noivo aos pais da futura esposa. E o veredito? Se a mostardella fosse cortada, o casamento estava aprovado! Além disso, já foi até moeda de troca: fazendeiros que ajudavam açougueiros recebiam um quilo e meio de mostardella por semana! Uma verdadeira “carne-moeda” com sabor de aprovação nupcial.
E para os mais corajosos, temos o Beròdo, ou morcela, uma iguaria de Natal feita com sangue de porco, leite fresco, moela, pinhões e especiarias como louro e cravo. De cor marrom e com cerca de 200 gramas, era tradicionalmente dourado na panela com cebola. Antigamente, os açougueiros presenteavam seus clientes fiéis com essa delícia, às vezes com passas e nozes, para adoçar o paladar – e o Natal!

As Frizze, de Val Bormida, são outro tesouro da “culinária pobre, mas sábia”. Imagine almôndegas de fígado de porco e linguiça, temperadas com bagas de zimbro e envoltas em uma membrana gordurosa que derrete no cozimento, deixando tudo macio e perfumado. Preparadas para grandes eventos como casamentos ou Páscoa, elas são a prova de que a criatividade transforma “restos” em banquetes saborosos.
A Testa in Cassetta, ou soppressata, é um exemplo clássico de “nada se perde, tudo se transforma”. Língua, pele, cartilagem e gordura da cabeça do porco são fervidas com louro e pimenta, depois compactadas em uma forma de tronco. A versão clássica leva pinhões, mas hoje há variações com casca de laranja, chinotto, maçã seca ou canela. Uma verdadeira aula de aproveitamento com sabor!
A joia mais curiosa: Um patê de lardo que vai surpreender

Por fim, a cereja do bolo da curiosidade: o Patè di Lardo. Esse creme rústico e perfumado, típico de Sassello, é feito a partir do processamento da banha de porco, salgada por pelo menos 20 dias. Depois de descascada, a banha é moída até virar um creme e enriquecida com ervas aromáticas locais. Vendido em potes para ser generosamente espalhado em torradas quentes, ou em pequenos salames em Castelnuovo, ele é um convite à indulgência. A curiosidade? A banha já foi um condimento diário, especialmente para quem não podia comprar azeite. Uma verdadeira “manteiga” dos tempos antigos, com um toque de Ligúria!
Então, da próxima vez que pensar na Ligúria, lembre-se: há um mundo de embutidos saborosos e curiosos esperando por você, contando histórias de criatividade, resiliência e, claro, muito sabor!